ENTRE RUAS
No bairro decadente da zona sul carioca viviam pelas esquinas, muitos mendigos: o bonitão cheirador de éter, já inchado por todos os poros; a mulher que, vestida de freira ensandecida, passeava pela praia e parava nas esquinas prostituídas da avenida à beira-mar; o negro envelhecido pela fome que fazia pequenos trabalhos de traficar o pó branco, mas que não dispensava sua ginástica diária, ao atravessar a rua correndo entre os sinais de trânsito.E o mais inusitado de todos eles, o cinquentão de boa aparência, sujo e maltratado como os outros, porém totalmente envolvido em atividades de leitura e escrita,como um intelectual.
Este sujeito, com muita quilometragem de rua, tinha todos os sintomas de loucura, como é de praxe entre mendigos: dialogava com interlocutores fantasmas, tinha acessos de raiva, gritava com os pedestres que passavam por sua rua e delirava, delirava muito. Só que seu delírio incluía o diálogo com velhos pensadores gregos, com termos latinos soltados a esmo, e com livros e papéis avulsos, onde se viam muitas linhas manuscritas com letra firme e forte. Sem dúvida, em outro estágio passado havia sido um profissional das ideias. Quem sabe um professor, um poeta ou um filósofo?
Por tudo isso, projetava-se entre todos os excluídos à sua volta. Seu domínio intelectual permitia certa liderança entre os moradores de rua e poderia ser considerado o mais folclórico entre todos os folclóricos tipos aloucados que habitavam a cidade.
Num dia corriqueiro de semana, uma notícia funesta correu pelo bairro e começou a ser veiculada de boca em boca, alterando a apatia geral.Uma série consecutiva de mortos por envenenamento, em cada esquina, atrapalhava o trânsito e a circulação de pedestres.
Apesar de os mendigos mortos serem manchetes dos jornais, até hoje não se resolveu o mistério. Quem seria o verdadeiro criminoso? Mas uma nota curiosa chamava a atenção de todos: o mendigo intelectual morreu segurando o antigo JORNAL DO BRASIL, caderno B, de uma sexta feira do ano de 2005, em que se assinalava a matéria sobre o novo livro de José Saramago - AS INTERMITÊNCIAS DA MORTE.
Em sua indiferença habitual, quase aliviados pela "limpeza das ruas", todos confabulavam e até faziam piadas sobre o significado do jornal nas mãos do morto.O chefe de Segurança Pública chegou a supor que a nota jornalística era um indício simbólico ou um sinal da inclemência divina contra a banalização do mal.Quem de fato dera cabo em todos os mendigos? Foi sua figura mais ilustre ou algum cidadão de "boa estirpe"? Todos são unânimes em concordar que esses crimes ficarão encobertos, aliás, como quase todos nesta cidade.
O fato é que a matéria do JB continua a intrigar, pois Saramago fala "no direito à vida e no dever de morrer". Seja como for, se foi um cidadão acima de qualquer suspeita, ou grupos de criminosos ou se foi algum mendigo com a intenção de denunciar, com a matança, o descaso de todos contra todos, não provocou nenhuma indignação. Ajudou sim, a tornar evidente a ausência dos valores humanos básicos e a aguda presença da alienação.