Um copo de retribuição
Blasfemava contra a sorte nos negócios o comerciante de bar. Eram quase onze horas da manhã de uma segunda-feira e seu bar, situado em um ótimo ponto na periferia da cidade, só havia lhe dado em vendas no dia a quantia de quarenta reais. Ele precisava arrumar uns cinquenta reais a mais para pagar a despesa diária do estabelecimento. Só de aluguel era quinhentos e cinquenta reais o valor mensal. Com a perspectiva de movimento que se mostrava àquela hora, parecia que fecharia em vermelho o expediente naquele dia.
"Também, nessa porra só entra pedinte e cachaceiro". Reclamava ele dos que entravam para pedir alguma coisa, geralmente um copo com água, e dos que gastavam ninharia, quando um sujeito em frangalhos e testa suada adentrou-se porta a dentro, se dirigindo ao balcão, onde se prostava o comerciante. Automático, este perguntou ao outro: "é água o que quer". E teve como resposta: "como adivinhou", antes de virar-se para a pia, pegar o copo plástico destinado aos pedintes e enchê-lo com água da torneira.
- Não! Da geladeira e em copo de vidro! O maltrapilho pontuou.
Nisso o balconista franziu a sobrancelha, com ar perguntativo, admirando a audácia do solicitante. Recusou-se mentalmente. Resistiu um pouco, mas, resolveu ir ver onde iria dar aquela cena inusitada. Entregou ao homem um lagoinha cheio de água gelada e o observou matar a sede com uma só golada.
Ao terminar a golada, batendo o copo na ardósia do balcão, meio que aliviado da sede o homem perguntou: "quanto é". E enfiou a mão dentro de um dos bolsos traseiros procurando a carteira.
O comerciante achou logo que além de folgado o sujeito à sua frente era um gozador, do qual ele não estava achando graça nenhuma. E a ponto de arrancar ele mesmo seu próprio bigode a la português, se virou para o velho aliviado da sede e respondeu o que ele queria saber: "cinquenta reais". Os exatos cinquenta reais que lhe faltava no dia para ele poder pelo menos almoçar com a consciência tranquila, que ainda pairava-lhe à mente.
Foi a vez do suposto pedinte refutar: "QUÊ?!? Eu devia ter perguntado o preço antes, né". Com a carteira à mão, ele a abriu escolhendo qual das notas de real com a efígie da república ele ia entregar para o moço que o atendeu. Colocou-a em cima do balcão de ardósia, dando um tapa sobre ela.
Orgulhoso demais para desfazer sua grosseria inconsciente e necessitado demais para dispensar o pagamento vindo em boa hora, depois de conferir à luz do sol se a cédula não era falsa, o dono do estabelecimento se virou em silêncio para a gaveta da caixa registradora como se estivesse em uma atuação normal de recebimento. Contou o troco que tinha para devolver ao agora chamado de cliente e viu que não teria como dá-lo por completo. Faltariam dez reais.
Frustrado por ter que ver ir embora o dinheiro que precisava e usando de astúcia para dispensá-lo já consertando a discriminação que se vira protagonizar, o comerciante voltou-se para o maltrapilho e disse: "ainda não tenho troco, essa fica por conta da casa."
E, na maior das inocências, imaginando que o severo balconista iria ter prejuízo tendo vendido um copo d'água gelada e não recebido por ele, o bom pagador deu outra sugestão: "Não... fica por sessenta! A não ser que você aceite me dar outro copo por um preço mais em conta."
E o copo a mais foi em retribuição à lição de empreendedorismo recebida pelo comerciante. Talvez, seu julgamento precipitado das pessoas a quem tem que atender estava fazendo afastar os clientes de seu negócio, pois, focava seu pensamento no que ele não deseja ver passar pela porta e não no contrário. A mente sempre trás pra gente aquilo que mentemos foco nele.
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