Ensaio sobre a cegueira cotidiana

Rompendo o silêncio da noite sonífera, desperta o controle remoto da vida.

Surgido para tomar o lugar da memória humana, o aparelho de 4.3 polegadas reluzente, agrupa em si, toda uma recente história do que vivi: carrega meus gostos e prazeres, minhas obrigações cotidianas e meus passatempos - nos momentos de timidez ou de constrangimento.

Ahhh… Essa nossa era narcísica, que não se cansa de se olhar no espelho e ignora as causas das injustiças que aqui vivemos...

Levanto e visto meu uniforme pós-moderno, que está culturalmente de acordo com a minha idade e o meu sexo. Enquanto tento ao máximo deixar normal, minha aparência de rosto inchado pelos males da sinusite, que é causada pela poluição ambiciosa das indústrias automobilísticas… Ouço do quadrado “satélitico”, que também é um instrumento dominador, o que há lá fora…

Lá, onde as massas de corpos uniformizados se exprimem nos asfaltos, seja com seus tanques de guerra urbanos ou nos enlatados vagões que atravessa a cidade. O tempo aqui é impaciente e competitivo, não espera ninguém! Ele é como aquelas pessoas extremamente competitivas - sempre te desafia a acompanhá-lo. Já o conhecendo, saio em disparada, seguindo as avenidas de comércio da explorada quebrada. Quando chego próximo ao formigueiro humano (a estação), começo a pensar na força que toda essa gente junta e objetivada teria para romper as tamanhas explorações que há em suas vidas. Lá dentro, todos parecem ter aceito o desafio proposto pelo tempo, correm para conseguir assento ou para espremerem-se junto às portas.

As latas urbanas chegam, e a avalanche humana lhe ocupa totalmente, alguns até prendem a perna, o braço ou a cabeça, na guilhotina de borracha.

Nos vagões, essa multidão que não é um todo fechado, mas sim um acúmulo de diversidade de ideias e posições, se misturam e se tocam - O racista, ali dentro, viaja junto ou até colado com o negro; o pastor e a funkeira até trocam olhares inevitáveis por suas posições no vagão; o homofóbico, ao tentar segurar a barra do vagão, toca sem querer na mão do homossexual e logo lhe pede desculpa - esse enlatamento junta todos os corpos, independentemente das ideias contrárias que eles carregam…

É óbvio que, de todo modo, não são reações sinceras, e que, essa bondade coletiva possa ser um mero sentimento de vigilância mútua, já que, por exemplo, declarar-se racista ou homofóbico na multidão pode causar problemas. Mas não podemos negar que, por estarem na mesma condição de enlatamento, há uma certa ajuda mútua entre os que ali viajam, por exemplo, quando no vagão entra um idoso ou uma gestante, olhares acusatórios logo procuram os que ocupam os assentos preferenciais que, na maioria das vezes, o cede.

Mergulhado na sociabilidade metropolitana, sigo com a máquina metálica percorrendo a cidade: ao lado, morros do Capão Redondo, Campo Limpo, Vila das Belezas e Giovanni Gronchi. Observando as coleções de cubículos de tijolos alaranjados, ao lado de outros empilhados no concreto - barracos e prédios juntos no mesmo território geográfico - de um lado, lajes com caixas d’água; de outro, terraços com piscinas; de um lado, a realidade do trabalhador; de outro, a sua inalcançável ambição individual. Neste momento, a solidão, que eu e todos ali carregavam, me bate nos pensamentos, e ao olhar de volta para o vagão, os exprimidos corpos se esforçam para conseguirem se ver nos seus espelhos portáteis. Me sentindo só e olhando a escancarada desigualdade, penso que talvez outros, ali, também se indignam ao vê-la… Mas, vai ver devem ter se cansado de olhar a dura realidade. A realidade de que ainda vivemos numa “casa grande-senzala”.

Do metrô, correm todos para fazerem a baldeação, o trem, que para na Estação Santo Amaro, carrega outros trabalhadores do extremo sul da cidade. Assim, entro num novo enlatamento e ao percorrer o trajeto da Marginal Pinheiros, vejo novamente a falsificação de uma cidade totalmente plastificada:

De um lado, um cadáver que exala o inacabável odor de sua interminável decomposição, ferido durante décadas pela ambição industrial, o rio, já não tem mais forças para seguir seu curso e ali, parado, reflete o céu cinzento e os prédios brilhantes que te espreme; do outro lado, as máquinas solitárias de locomoção disputam cada centímetro de asfalto e exalam a fumaça do egoísmo, também tiveram que, forçadamente, aceitar o desafio do competitivo tempo.

Mais ao lado, arranha-céus competem por altura e grandiosidade, são espelhos da ostentação e buscam fazer com que os patrões pareçam maiores que os trabalhadores; eles refletem em seus espelhos todas as suas vítimas.

Nas paradas, entram e saem trabalhadores, vendedores, pessoas pedindo ajuda financeira, evangélicos falando da grandiosa bondade de Deus; e deste modo, a cidade invade os vagões. Passando entre as Estações Morumbi e Berrini, a grandiosa e arquitetônica, Ponte Estaiada, nos encobre e o sentimento de pequenez novamente surge. A ponte, assim como toda construção humana, que há ali, reflete-se no rio, morto pelos próprios homens.

A minhoca metálica segue e ao parar na Estação Berrini, lá do outro lado do rio Pinheiros, vejo repetir-se o cenário da escancarada desigualdade - novos cubículos de tijolos alaranjados avizinham-se com o luxuoso Shopping Cidade Jardim.

Após mais alguns minutos, o trem chega na Estação Pinheiros, que tem como vizinho, do outro lado do rio, o prédio de uma das inúmeras empresas envolvidas em corrupção política - a Odebrecht - do vagão, consigo ver no terraço, luzes, mesas e pessoas conversando na maior naturalidade, e a contradição novamente se torna explícita: pessoas relaxadas comendo, possivelmente, luxuosas delicias, conversando naturalmente no terraço de uma empresa corrupta; e, trabalhadores fiéis as normas da lei, ficam amontoados no enlatamento diário do trem.

Saio do trem e sigo a gentrificação com a maioria, em mais outras duas linhas de metrô. Nessas linhas a sociabilidade não se altera tanto. E assim, chego ao meu destino: um prédio enorme e todo espelhado - como não se sentir rodando numa roda de hamster?

Mas ainda sim, passo o dia me indagando - Por que essa massa, que possui uma força descomunal, não consegue notar que algo de muito errado há no espaço em que vivem? Por que, quando abrem seus olhos, não enxergam as contradições escancaradas neste espaço que habitam? Por que não notam a capacidade que possuem de se agrupar e, assim, ocupar as Odebrecht's, Rede Globo e Planalto? Por que não notam que estão todos juntos, no mesmo vagão exploratório da vida?

Talvez seja porque o capitalismo pintou o ser de modo tão reluzente, que este, não consegue mais deixar de se ver - mas esse “se ver”, é na verdade estar cego a tudo de errado que está em sua volta.

E o que será?