A linda Flor do Lácio
O trabalho com a disciplina de Língua Portuguesa é desafiador. Somos cobrados por muitas mazelas educacionais e fracassos no desempenho do alunado. Mas, por outro lado, é fascina e instiga, pois possibilita viagens sem fronteiras de tempo ou espaço, mesmo sem sair do lugar.
A paixão pela profissão, “professora de português”, sempre me honrou e motivou a buscar a excelência. Obviamente, nem sempre é possível, mas também não é empecilho para não a buscar.
Foi com essa motivação e entusiasmo que iniciei o projeto “Língua Portuguesa: um caldeirão de falares” com minhas três turmas de 8º e 9º ano do Ensino Fundamental, na U. I. M. Renê Bayma, localizada no povoado KM 17, às margens da BR 316, zona rural de Codó-MA.
A comunidade em que se localiza nossa escola, KM 17, tem um índice de analfabetismo exorbitante e, em várias situações, percebi que havia muito preconceito em relação à forma de falar das pessoas não escolarizadas que ali vivem, sobretudo entre os próprios alunos. Além disso, nossa escola é Polo da Educação do Campo de Codó, logo, recebe alunos de muitas comunidades diferentes, mas que compartilham as mesmas misérias. Eles trazem também as marcas linguísticas de suas comunidades
O preconceito com os falares das comunidades de origem dos alunos e a Língua Portuguesa como apanágio para a construção de identidades motivaram a criação do projeto, para sanar algumas questões que sempre me incomodaram, por exemplo, como fazer com que os alunos tivessem experiência sobre o lugar onde vivem, as peculiaridades de se relacionar com o mundo e com os outros por meio da língua.
O projeto teve duração de seis semanas (de 12 de agosto a 7 de outubro de 2016) e girou em torno da construção de um “Álbum”, cujo tema foi variação linguística. A cada semana, os alunos recebiam uma lista de atividades, uma para cada dia, baseadas em assuntos referentes à semana programada. Eram leituras a partir da geografia, da história, do inglês, da arte, da educação física, da ciência, da matemática e do português. A interdisciplinaridade teve cadeira cativa em nossas aulas.
O primeiro passo foi abrir o canal de escuta. Aqui, desfilaram ‘causos’ e mais ‘causos’ nas vozes pequeninas; interpretações mil das histórias ouvidas ao redor das fogueiras, contadas pelos avós/griots embalaram ouvidos atentos e o riso ganhou lugar de destaque na roda de conversa. Foram momentos marcantes.
Um caldeirão de falares se instalou na escola Renê Bayma naquela tarde e, por meses, foi temperado pelos jovens leitores/escritores/pesquisadores com o ingrediente da curiosidade. A “tribo” de cada aluno fornecia o molho principal que punha gosto bom naquele caldeirão.
O projeto foi dividido em quatro momento: aulas e atividades de leitura que constituíram o ‘Álbum’; a pesquisa de campo nas comunidades dos alunos; o seminário de socialização da pesquisa de campo; e, o momento cultural. Em cada etapa, uma pitada de entusiasmo era acrescentada ao conhecimento dos alunos e um desafio maior surgia.
Trabalhar com salas muito cheias e sem estrutura é muito desgastante. Para além disso, a carência material dos pequenos só não era maior do que minha vontade e esforço, mas constituíram entrave para um resultado eficaz. Nesse contexto, o sentimento de estar dando “murro em ponta de faca” é inevitável. O olhar de “esses meninos não têm jeito” de colegas, descrentes no sistema falho que temos, por vezes foi meu freio. A bem da verdade, esses pensamentos me cercavam por algum tempo, mas um “professora, no ano que vem tem projeto de novo, né?” afastava as angústias e a sensação de fracasso que vez por outra teimava em tomar assento.
No primeiro momento do projeto, meus pequenos encontraram em suas casas a fonte para o estudos que estávamos iniciando e, a partir da teoria vista em sala, eles perceberam in loco os fatores de variação linguística, as modalidades de registros da língua, o estrangeirismo nas disciplinas Língua Portuguesa e Língua Inglesa, as relações sociais e culturais na Geografia e na História, aspectos regionais, religiosos e artístico brasileiros nas disciplinas de Ensino religioso, Arte e Educação Física, estudaram os índices de desenvolvimento da nossa região com um mergulho na Matemática.
Para essa etapa do projeto, “Vidas secas”, de Graciliano Ramos, “Luzia-Homem”, de Domingos Olimpio, “Auto da Compadecida”, de Ariano Suassuna, “Narradores de Javé”, Elliane Caffé, “Asa Branca”, Luiz Gonzaga, “Samba do Arrnesto”, de Adoniran Barbosa, e muitos outros textos, em diversos suportes complementaram nossa ceia, emprestando uma quentura ao caldeirão que, efervescente, exalava um cheiro bom de histórias bem contadas.
No segundo momento, dividi os alunos em pequenos grupos e munido da teoria foram a campo, viver na prática como nossa língua é viva e linda! Cada grupo entrevistou pessoa de suas comunidades que exemplificavam os fatores de variação linguística: um grupo ficou com a ‘faixa etária’, outro com “diferenças por região”, e assim, sucessivamente.
Para oportunizar a troca de conhecimento e a divulgação da pesquisa, realizamos um seminário de socialização na sala de aula, assim, os alunos compartilharam suas experiências. Isso enriqueceu muito o trabalho e estimulou muito os envolvidos, pois eles viram sentido no que estavam estudando.
Não foi uma etapa fácil, pois a adolescência enfadada também se tranca na timidez e quebrar essa corrente exigiu muito ‘jogo de cintura’ para não deixar ninguém para traz. Mas o resultado, mesmo que não tenha sido unânime na adesão, motivou e acrescentou um sabor forte ao tempero do nosso caldeirão.
A parte cultural, indispensável quando se trabalha com adolescente, foi o momento final do projeto. Aqui, especiarias de todas as regiões brasileiras emprestaram o sabor final a nossa farta ceia de conhecimento. O caldeirão do Renê Bayma exalou um aroma diferente... “de quero mais”. Perfume esse que se somou à sonoridade que me embebeda a cada culminância de projeto, e foram muitos: “Leiteratura”, “ Leitura construindo leitores”, “Um dedim de prosa” e “Codó também é África”.
Danças como o Carimbó, da região Norte, o Countryn, do Centro-Oeste foram algumas que serviram para soprar a fogueira que alimentava o caldeirão do Renê Bayma. O jornal “Na ponta da língua” noticiou que nossa ceia estava servida. Os diferentes “Tipos de assaltantes”, em “Uma feira muito louca”, como num “Causo mineiro” deixaram a mostra verdadeiros talentos juvenis nas representações teatrais daquela tarde especial de outubro.
Momento igualmente marcante foram as exposições dos ‘Álbuns’... criativos, caprichados, outros nem tanto. Foi uma festa na escola, como a gincana cultural cuja temática foi o projeto.
Na disciplina de Arte, os alunos fizeram uma releitura de “Asa Branca” e na simplicidade de suas penas e imaginação, realizaram uma linda exposição em homenagem ao ícone Luiz Gonzaga, que muito contribuiu para ‘espaiá’ a Língua Portuguesa e o Nordeste mundo a fora. Uma deliciosa ceia de conhecimento foi preparada e servida pelos e para os alunos do Renê Bayma.
O processo da aprendizagem se realizou de modo satisfatório, os alunos foram envolvidos e vivenciaram experiências ímpares que levarão para suas vidas. Presenciei situações que eles identificavam o preconceito no falar do outro e atuavam de maneira crítica, mas o ponto máximo da concretude desse processo percebi em Porto Alegre.
Por ocasião da participação da escola na Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, viajamos para a capital gaúcho logo depois do projeto “Língua Portuguesa: um caldeirão de falares”. Ao desembarcar no Aeroporto, meu aluno Lucas Marques foi logo dizendo “Olha, professora, ela fala puxando o R!”. Foi indescritível a emoção que aquela fala me causou. Uma feliz coincidência que nos proporcionou muitas alegrias e realizações. Naquele hotel couberam todos os estados brasileiros, um verdadeiro caldeirão de falares que torna a Língua Portuguesa a mais linda ‘flor do Lácio’.
Ouvir o aluno pedir para que tenha um novo projeto no próximo ano, ou ver o aluno comprar um livro porque você falou em sala, ser inspiração para alguém é a maior recompensa de um trabalho que buscou a excelência. São sementes plantadas nos sentimentos de cada adolescente, cujos frutos serão doces.
Trabalhar na zona rural não é mais fácil que na zona urbana, ao contrário. Mas também as dificuldades não podem ser maiores que o compromisso. Os resultados veem para quem acredita e faz...eu me reconheço em cada um dos meus alunos.