MAIS OUTRO, MAIS OUTRO E MAIS OUTRO.
Aqueles olhos me deixavam louco. Pareciam bolas de fogo querendo soterrar tudo em volta, sem perdoar nada que fosse. Dava tanto medo de chegar perto que eu fugia deles como o gozo foge da cruz. Lembro quando cruzei com eles da primeira vez. A madrugada ainda bocejava suas fronhas e voltávamos do bar. O trabalho tinha sido duro, Adélia não arredou pé de atazanar meu canto. Ainda vou me livrar desse martírio, se vou. Duas gotas de cianureto no seu Martini fariam minha paz ressuscitar. Sem contar que a luz faltou 80 vezes. Não errei no número não, por 80 vezes ficamos ilhados num breu cruel que infestara tudo com seu manto avassalador. O pneu tinha que furar justo na hora em que Adélia rasgava o último botão da blusa, justamente aquele que, por sáculos, ficava me tentando com seus guizos de cetim barato, adocicados, amotinados. Ainda chovia. De início, garoa imberbe, mas bastou pegar o estepe para cair o mundo, encharcando meu tesão e desarmando todas guaritas daquela infeliz. Sujei o smoking que até então parecia ter saído do alfaiate. Quando meus óculos foram levados pela enxurrada, fiz valer um choro que, de tímido no início, virou berreiro. Parecia que estava no matadouro com a faca entrando pela minha jugular sem dó. Adélia fingia não contemplar minha agonia, como se perdoasse aquela decrépita cena. Consegui trocar o pneu mesmo não enxergando um fiapo à frente do nariz. Quando entrei no carro, ela fez nascer um sorriso que nunca tinha ungido antes. Afagou meus portões com mãos de freira ainda enclausurada. Cuspiu fora o último botão e se jogou sobre meu corpo respingando suor, respingando segredos, respingando vontades - todas elas. Quando o guarda jogou aquele holofote sobre nossos corpos teimando se entrelaçar numa dança alucinada, tudo congelou. Nos estatuamos como se tivéssemos sido flagrados pela redenção, talvez pelos vãos impetuosos daquela ferida estridente. Não tivemos alternativa senão descer do carro, expondo nossas carcaças nuas para as criaturas da noite, que nem fomos também certo dia. Adélia ainda era uma linda espécime em extinção. Anos pareciam que titubearam em caminhar nos seus domínios. Cabelos ressecados pelos bafos maltrapilhos dos clientes que só queriam por-e-tirar, por-e-tirar e nada mais. Ela deve ter amado uns 15 infelizes naquela noite. Mas, por certo, salvara o dinheiro para não sermos expulsos da pensão outra vez, como vinha ocorrendo semana a semana, desde que nossas vidas se enroscaram sem volta. Quando imaginava Adélia se deitando como cada novo cara, voltava aquela travada na garganta que represava meu ar sem pressa, não deixando sair um tiquinho que fosse. Ela jurou que deixaria aquela ladainha, que viveria só para preparar ovos mexidos para mim e nada mais, nada mais mesmo. Ma bastava a orquestra começar os acordes do Pour Elise para aquela louca começar a caçar e arrebatar para o quarto mais outro, mais outro, mais outro. E mais outro. Foi então que fui sacudido pela língua da Tolina e isso me fez voltar à minha triste sina de cobrador de ônibus, um dia ainda largo isso e caio no mundo como meus poros viviam implorando, sem dar nenhum descanso. Garanto que antes da próxima lua aterrar, pego meus trecos e vou estrada afora buscando gostos ainda sem tampa. Não cheguei aos cinquenta para ficar ilhado naquela espelunca caindo aos pedaços. Então vi que o corpo de Adélia estava ficando frio e sua pele começava a trincar. Fiquei aterrorizado. Quando a joguei no rio e fiquei esperando as águas pararem de revirar, fiquei vingado. Então peguei a marmita, sentei na calçada e mandei ver naquela gorogoba fria. Depois fui dormir, pois era isso só que me restava. No outro dia limparia os escombros que o fogo não conseguiu chegar perto. E voltaria a ser eu mesmo, fosse o que fosse. Fosse o que fosse.
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