Carlos

Nem sempre a felicidade se mede por coisas valiosas. De fato o valor é dado por aquilo que nos é mais querido. Assim pensava Carlos, todo dia, pela manhã, ao tomar seu café, ler seu jornal. Trocava a areia do gato, limpava os pêlos que Félix deixava por toda a casa. E passava um bom tempo escolhendo a gravata que iria usar naquele dia, como uma cerimônia que era sim sua rotina, embora não fosse desgostosa a ele. Carlos saía a pé e ia pegar o bonde que ali perto passava. Gastava um bom tanto de tempo em dar bom dia ao seu José da farmácia, a dona Fininha, dona do pensionato na esquina e a seu xará, o Carlos açougueiro. Carlos transparecia confiança. Era um rapaz alto, um jovem em seus trinta e poucos anos, poucos hábitos. Usava um óculos retangular que, conferia a ele um ar de sábio. Sorria por onde passava e caminhava forte, com seu corpo avantajado, que não era em forma, uma leve barriguinha, gorduras aqui e acolá que não deixavam sua autoestima baixa. Ia para a repartição e lá era o "cara". Até seu chefe pedia conselhos. Seus colegas o admiravam. Apesar de famoso e solicito era suscinto; sentava a sua mesa, ligava o computador (que demorava uma eternidade para ligar), ajeitava a cadeira e só parava para almoçar, onde dava conselhos culinários as moças casadas que suspiravam e sonhavam com um rapaz como ele, um faz tudo de primeira. Carlos ouvia os comentários, as piadas maldosas dos amigos, "sempre sozinho Carlos?" Diziam. Carlos sorria de canto de boca, coçava a nuca com a caneta e soltava um "aí aí, eita vocês hein?" E assim seguia o dia. Ora tinha uma reunião ora um bate papo, não coisa de trabalho, não. Era pra decidir a festa de fim de ano da firma. E aí vinha a pergunta: "Esse ano o Carlos vai?" Tinha até aposta. Mas, mesmo assim, Carlos ficava lá, na sua mesa, ajeitando os papéis para o dia seguinte. Ouvia seu nome nas bocas maliciosas que sussurrando seu nome não entendiam o porquê de Carlos, alguém tão comunicativo, sempre estava sozinho. E de novo coçava a nuca, mas agora tinha dado uma leve cutucada e havia doído. Carlos olhava no relógio, já era cinco. Os colegas começavam a ir embora, felizes, pois aquele dia desgastante tinha acabado. E ele ali, sentado. Seis, sete, sete e meia. E foi embora. Sentou no bonde e parecia ter carregado uma tonelada. O sorriso pra moça ao lado que vivia trocando olhares com ele foi tímido e fraco. Não era o mesmo Carlos, embora só ele soubesse disso. Passou pelo jornaleiro, pela pensão e açougue e de cabeça baixa acenou aos vizinhos. Subiu os degraus de seu apartamento. Abriu a porta e foi afagar Félix que só miou e ronronou, pedindo comida. Nove horas já. Tomou um banho. Fez sua janta, coisa rápida. Comeu como se tivesse comendo forçado, a comida não descia, a garganta parecia tampada. Lavou a louça, foi pro quarto, sentou na cama. Chorou. Queria dizer que ia na festa da firma mas não conseguia. Queria falar com a moça do bonde, dizer o quanto era linda, mas não conseguia. Tomou um frasco na mão e viu seu nome. Tomou duas pílulas, deitou-se com a mão no peito, apertado, ofegante. Fechou os olhos e tentou dormir, mas só pegou no sono lá pra meia-noite. Acordou no dia seguinte, fez sua rotina. Olhou no calendário, era Terça, suspirou aliviado e sorriu. Ele apenas queria algo que lhe fora tirado há muito tempo. Algo que só ele sabia...

Dom Torres
Enviado por Dom Torres em 11/01/2018
Reeditado em 11/01/2018
Código do texto: T6222754
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2018. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.