PARA ELA ERA DEFEITO, PARA ELE ERA PURO CHARME.
Todo mundo só fala da bunda da Anitta e suas celulites e de como ela conseguiu lacrar o machismo através do empoderamento feminino. Tem artigos pra todos os gostos, desde aqueles com escrita fácil de ser entendida, cheia de coisas óbvias e tem aqueles, chatos pra cacete, que mais parecem teses acadêmicas com jargões retiradas dos livros de Lacan que nem Foucault consegue entender.
A verdade é que homem nenhum liga se a bunda tem celulite ou não, claro que há exceções, existem alguns que fazem a sobrancelha, disputam o espelho em casa com a mulher, dobra as cuecas e guarda por cores em sua gaveta e anda dentro de casa de pantufas, mas não é destes que estou falando. Para os homens, mulher sem celulite, não é mulher e ponto.
Então onde está o tal do empoderamento feminino na bunda da Anitta? Ela apenas evidenciou o obvio: Que os homens adoram uma bunda que domina uma tela inteira, apenas isso e nada mais. "Foi uma decisão minha não fazer o retoque. A mulher real tem celulite, a maioria tem”, fala ela numa entrevista sobre o clipe. Mas a verdade é que tudo no clipe é falseado.
Os cortes (close) feitos na câmara sobre o corpo de Anitta evidenciam o que Freud chamou de “ver por partes”, e que alimenta o fetichismo masculino, já que o homem é impedido em seu inconsciente de desejar a mulher por inteiro, portanto, ele faz do corpo feminino o recorte adequado ao seu desejo, no caso de uma maioria brasileira – a bunda, talvez seja por isso que Roland Barthes, afirme poeticamente: "o amor é um detalhe".
Lacan afirma que não existe a mulher, não existe no sentido da completude, é fabricada por um longo trabalho psíquico, como escreveu Heidegger: “Ela é um vir-a-ser”. Então é possível ser feminina sem ser toda mulher e sendo assim compreender o fato de ser o objeto do desejo masculino, um objeto fragmentado pelo fetichismo que encontra o prazer no corpo da mulher, mas precisa separar a “virgem” da “prostituta”, pois amar e desejar simultaneamente a mesma mulher é ato incestuoso, pois remete ao desejo e amor pelo materno.
Sendo assim, a bunda da Anitta acaba por ajudar os homens em seus desejos, pois precisamos de uma "malandra" para desejar, seja no mundo real ou na fantasia, pois amar e desejar a mesma mulher só é possível quando o homem conseguiu, em seu inconsciente, abrandar o respeito por essa mulher que ama; podendo assim sentir tesão por quem também sente ternura, o encontro simbólico da virgem com a prostituta, da santa com a malandra.
Para uma mulher, o desejo não sofre essa fissura: ela ama e deseja o mesmo homem e é essa combinação com o amor que dá ao desejo feminino um caráter misterioso, pois é a mulher impedida de expressar o que sente, precisando sempre de uma identificação que a represente. Sendo assim, a falta de um ponto de apoio para uma identificação feminina a faz sustentar-se pelo culto de uma feminilidade encarnada no corpo de outra mulher, e aqui Anitta é aplaudida por diversas, que vê na sua bunda, a bunda que lhe faltava.
É esta dependência, que faz com que cada mulher se lance numa busca épica a uma imagem idealizada e que por isso também inatingível, afinal o que está em jogo ali, não é só a bunda da Anitta, mas a objetificação do corpo feminino, uma superexposição de corpos que enaltecem uma juventude que não pode ser eterna, que exigem um rebolado que possa satisfazer a mídia e a sociedade contemporânea com sua dimensão super egoica, e que realize assim a garantia da construção de uma identidade feminina. O psicólogo clínico Allan Felipe escreveu que na perspectiva Heideggeriana “todo ser humano é um ser-para-morte e toda angústia é uma angústia diante da morte, sendo assim, a busca desenfreada por um corpo jovem refere-se a uma dificuldade de lidar com o envelhecimento e com a morte”. E conclui que, portanto, “o corpo é o local onde o tempo deixa sua marca”.
A bunda da Anitta nos ensina que não há bunda nenhuma igual à outra, e que mesmo essa Anitta que não permitiu nenhum truque de câmara em sua bunda, é a mesma que nunca escondeu de ninguém as cirurgias plásticas que fez em seus lábios e nariz e outros lugares a mais. Então, não se pode ver na bunda da Anitta, além das celulites, é claro, nada mais que a possa colocar de fato como modelo de empoderamento feminino, pois, se há a necessidade de objetificação para atender as demandas de consumo de uma sociedade capitalista que lucra com o corpo feminino, o empoderamento foi esquecido.
Mas nem tudo é decepção, apesar da reafirmação do capitalismo de dominação do corpo feminino como objeto de consumo, ela conseguiu provar, haja vista o sucesso do clipe, que a ausência das celulites costuma ser uma cobrança muito mais manifestada pelas mulheres que pelos homens. Anitta mostrou que o que as mulheres têm como defeito, para os homens é puro charme e desejo.
Jairo Carioca, escritor e psicanalista, autor do livro "Crônicas de um divã Feminino" pela editora Autografia