Sobre efeitos e borboletas

E de dentro da casa, corre João, passos vacilantes, uma vida inteira invocando, olhar rápido e faiscante. Vê uma borboleta - das bem grandes, das bem coloridas, tal qual seus brinquedos, mas que se movimenta sozinha - um mistério a ser desvendado. Corre, tropeçando aqui, caindo ali, gritinhos de alegria e mãozinhas estendidas. A borboleta saltita pelos ares. Daquele lugar, João sente os cheiros da comida (mamãe dentro de casa) e o de terra molhada. Seus pés tocam a terra áspera e úmida. Ouve, a alguma distância, os sons aconchegantes do lar e o coro dos passarinhos que parecem estar em festa. Roça a sua pele, uma brisa leve, precedente da chuva noturna. Mas, todas essas sensações são periféricas, naquele momento, tudo é a borboleta.

A borboleta parece entender o quão inocente e inofensivo é o seu perseguidor. Não foge, rodopia ao seu redor. E João continua, incansável. E corre, e ensaia pulos e cai.

Repentinamente, algo prende sua atenção, João para e olha uma grande poça de lama, à sua frente. De tão atento, a borboleta quase pousa; curiosa, voa em sua direção. Descobre: João observa a formação monótona e constante de pequenas ondas na água, provavelmente, a colisão de uma pedra causada pelo seu perseguidor. João observa. A borboleta rodopia.

Maria acorda. Até ali, tudo dentro dos seus planos. Veste a roupa previamente escolhida, ajeita os cabelos, faz uma maquiagem. Não aguenta tomar o desjejum, o estômago embrulhado, uma ansiedade antecipada à entrevista de emprego. Era o seu sonho: ter uma carreira, ajudar à família e realizar seus desejos consumistas. Nariz em riste, ruma ao ponto de ônibus. Chega cedo. Já dentro do coletivo lotado, nem atenta para os caminhos, viaja em seus sonhos, lista tudo o que vai fazer depois do emprego. Só volta à realidade quando um solavanco a joga ao chão, uma freada inesperada. Um abalroamento, logo à frente e naquele momento. Todos devem descer. Naquele alvoroço e agitação, Maria se entristece pela saia preta amassada e o dolorido do machucado. Determinada, não desiste - "já estava perto, iria à pé, dava tempo". Descer do ônibus foi difícil, pessoas nervosas, pressionando os corpos umas contra as outras e Maria forçando sua descida. Consegue saltar, saindo do lotação, mas cai de mau jeito, quebra o salto do sapato. Maria chora, desfazendo a maquiagem.

Alice, apressada, dirige pelo centro. Precisava comprar o material escolar do seu filho. Queria deixar o carro naquela vaga de sempre, onde não precisava pagar nada. E a vaga espera por ela. Agradecida, com uma oração interior, pára o carro, desce e vai às compras. Displicente e distraidamente, deixa para trás seu gol marrom.

José, no ponto do ônibus no centro da cidade, espera. Marcara um encontro com Juliana, o primeiro encontro. Mas a condução não chegava. Ainda há pouco falaram de um acidente, dificultando o trânsito, buscavam uma rota alternativa. Ele sua, impaciente, olha o relógio.

E no local do acidente, amontoam-se pessoas, carros, motos e ônibus, poucos observam aquela moça chorando, borrada, olhando para seu sapato - um pequeno detalhe naquele quadro caótico. Mas a vida segue, as pessoas retornam para si e o trânsito, de uma forma ou de outra, volta a fluir.

Para a maioria, a traquilidade se refazia, se Felipe, na sua picape recém comprada, tivesse escolhido outra rua para desviar do tumulto causado pelo ônibus, pois numa manobra mal calculada, bate num gol marrom.

Maria falta à entrevista.

José perde o encontro.

Felipe senta-se na calçada, esperando - sem saber - por Alice.

João, alheio a tudo, a borboleta ao seu redor, continua com o olhar fixo: numa premonição, observa as ondulações.

Eram Maria, José, Felipe e Alice.

Luciana Luz
Enviado por Luciana Luz em 07/01/2018
Reeditado em 24/11/2021
Código do texto: T6219596
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