A rua

Aparentemente, uma rua como outra qualquer. Ladrilhos de pedras comuns, ladeada por largas calçadas de cimento e casas de um conjunto habitacional. Destoava das outras na alegria, no brilho transbordante da sua existência. Não se tratava de uma rua, mas da rua – palco de risos, gritos, cansaço, correria, cheiro de suor – um ponto de encontro.

Não sei precisar o tempo. Mas por ela passaram meu velocípede, minha bicicleta, meu salto alto. Lá meu coração bateu mais forte pela primeira vez.

Dizem que a presença de crianças, traz vida a um lar. Eu penso que incorpora a vida em qualquer lugar. E nela, naquela rua, existiam muitas crianças. Por isso, era iluminada, o próprio sinônimo de felicidade.

Lembro-me da minha ânsia em finalizar as tarefas escolares, para me transformar em sombra pedinte da minha mãe e, depois da condição exposta, em vigia da porta e do tempo, esperando o momento chegar.

Então, à tardinha, todos (pseudo) banhados iam de encontro com a liberdade. A rua era nosso esconderijo, a passarela das carreiras, o apoio para as brincadeiras de corda e elástico. Uma gritaria numa confusão bem compreendida. Éramos, foguetes infantis, cegando nossas mães. A tradução da impulsividade.

Não cuidávamos com nada. Isso era ofício dos pais sentando em suas preguiçosas, a conversarem, atentos aos perigos por nós ignorados. Vez ou outra, soava um chamado de alerta.

De todas as meninas, acredito que fui uma das mais molecas. Joelhos rasgados, testa ponteada, corredora, equilibrista (e desequilibrista) de muros, malabarista em galhos de árvores eram minhas especialidades.

Em alguns domingos, nossos pais se reuniam para “juntar as panelas” e, ali, nas calçadas da rua, almoçávamos e banhávamos de mangueira.

Até os dias nublados, na rua, eram divertidos, desenhávamos na calçada sóis sorridentes. Uma oração a Deus para que não chovesse. Mas, diante de uma inevitável chuva, ainda arriscávamos negociar com nossos pais um banho naquela que era nosso melhor brinquedo.

Nas proximidades do mês de junho, a rua se sacodia, alvoroçada – os planejamentos da festa junina. E era menino da rua, e menino de outras tantas. E o formigueiro infantil pregava bandeirolas e ensaiava. No dia da festa, a rua era somente nossa: fechada por muros de palhas, sem trânsito de carros. A liberdade era integral. Espalhávamo-nos pelas barracas de comidas e bebidas – nós, os caipiras - dançávamos, soltávamos bombas, estrelinhas. Nossa trilha sonora era Luiz Gonzaga, momento maior – a quadrilha.

Posteriormente, pareado ao nosso crescimento, surgiram os jogos de vôlei. Rede esticada, times se revezando, bola voando. E a rua seguia feliz.

Pouco a pouco, aconteceu. O silencio se aproximou e ficou. Hoje, a rua é o tremor do mormaço subindo do calçamento, é a voz distante de um ou outro vizinho ecoando, é o canto do pássaro solitário, é o sopro profundo de uma eventual brisa escaldante a nos questionar pela vida.

E a vida nasceu conosco e brotou de nós. Antes, protagonistas; hoje, expectadores de outras formas de alegrias infantis espalhadas pelos jogos eletrônicos, jardins de condomínios, quadras escolares. O lamento, apenas, em não ser mais na rua.

Sei, aquela rua nos afetava, porque se fecho os olhos e me concentro, revejo o colorido, sinto sabores, cheiros, sons e toques daquela época. São sentimentos bons como um abraço apertado de alguém distante.

E aquela rua ainda nos une. No aperto do peito, no suspiro de saudade, no sorriso entrecortado e nas boas recordações. Dentro de nós, ela ainda é a rua, é o nosso ponto de reencontro.

Luciana Luz
Enviado por Luciana Luz em 07/01/2018
Reeditado em 22/11/2021
Código do texto: T6219308
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