Volante embebido em álcool, pingente mergulhado em sangue

Em uma sala de aula do segundo ano do ensino médio de uma escola, a professora Samanta, 28 anos, tem longos cabelos loiros e usa uns óculos de armação avermelhada, dita para seus alunos o tema da redação que eles irão elaborar durante o bimestre atual.

—Então, pessoal, é isso. Aquecimento global será o tema da redação desse bimestre. Começaremos a trabalhar em cima disso a partir da próxima semana. Podem sair; bom final de semana.

Todos saem da sala. Samanta se dirige ao seu carro que está no estacionamento da escola. Enquanto caminha, uma voz, que diz: “professora, espere”, se aproxima cada vez mais. Samanta olha e vê que era Caio, um de seus alunos, correndo em sua direção. Caio tem 17 anos, cabelos negros espetados e estava usando um moletom azul com uma camisa branca por baixo.

—Professora, que tal a gente fazer uma redação sobre ”educação no trânsito” em vez de “aquecimento global”?

—Caio, nós temos que tratar de temas que possam cair nos futuros vestibulares de vocês; educação no trânsito, em geral, não é muito recorrente.

—Poxa, eu tinha tantas ideias para propostas de intervenção. Por exemplo: criar um sistema de detecção de níveis alcoólicos nos volantes e uma trava de velocidade que é acionada por comando de voz, assim a pessoa teria que falar para que possa aumentar a velocidade do veículo, dando brecha para que o detector de embriaguez entre em ação.

—É uma proposta legal, Caio. Desenvolva-a mais e quem sabe na próxima.

—Tudo bem, tchau.

Ao sair com seu carro, a professora olha Caio pela janela. Nesse instante, um veículo, preto e modelo atual, surge no quarteirão e vai para cima do garoto. A professora, desesperada, freia o carro, tira o cinto e sai. Caio, em um reflexo, se joga ao chão e cai por cima do braço. Por um segundo, o estudante se salva da morte, entretanto, grita de dor no chão.

Samanta corre em direção ao garoto e nem dá atenção para o carro que estava ali, esbarrado no poste da escola.

—Fica calmo, Caio; vou te levar para o posto médico da escola.

—Moça, se eu ajudar a levar o garoto ao hospital, promete não chamar a polícia? — O homem alto, pardo, cabelos curtos e lisos e com uma grande cicatriz no rosto se aproximava, frenético. Uma veia de raiva saltava da testa de Samanta. — Ei, você está me ouvindo? — Nessa pergunta, O homem já está bem perto de Samanta, fazendo com que a professora sinta um forte cheiro de álcool. — Foi esse moleque que entrou na rua sem prestar atenção — essa foi a gota d’agua para a professora.

—Sai de perto de mim! — Samanta subitamente dá um tapa no rosto do homem que o faz cambalear — não preciso da ajuda de um bêbado egoísta como você!

—Você está louca mulher?!

—Eu aposto que você vai acabar se matando algum dia, mas antes disso eu vou te jogar na cadeia, seu idiota. — Samanta, após falar, olha para o braço de Caio, que estava consciente, diminui a exaltação de sua expressão facial, ajuda-o a levantar e o guia em direção ao posto. O bêbado já tinha dado o fora nesse meio tempo.

No posto de saúde da escola, Caio está deitado numa espécie de cama. Samanta está sentada ao seu lado e o médico, moreno e de jaleco, avaliava o rapaz.

—Ei, professora — o garoto agarra suavemente o pulso de Samanta

— eu não queria o tema, pois sou péssimo em temas ambientais, mas quem diria que isso aconteceria. Depois dessa, a senhora pode cogitar mudar de ideia, certo? — Caio, mesmo sofrendo de dor, ainda consegue arrancar risos da professora.

Em uma casa de outro local, Paulo conversa por telefone com Pedro, seu irmão, sobre como bateu o carro em um poste. Depois de alguns minutos de diálogo, Pedro faz um pedido à Paulo.

—Mano, você pode me buscar hoje à noite, quando acabar a festa da Sandra; acho que não vou conseguir ficar sóbrio para dirigir o meu carro. Já que você bateu o seu carro, pegue um táxi que eu pago quando chegar lá.

—Claro, chego lá as 21:30.

O dia finalmente escurece e a noite chega. Um garoto caminha pela calçada, com uma faixa no braço direito e usando um moletom azul: Caio. Ele observa uma grande movimentação em um local; uma festa. De longe avista a fisionomia perfeita do motorista que quase o atropelou mais cedo. Caio avança em direção a esse homem.

—Ei, idiota, você não acha que é muita cara de pau ficar... — Caio, olha para o rosto do homem com mais foco e percebe que lhe faltava uma cicatriz — opa, desculpa, achei que você fosse...

—O meu irmão?! Todo mundo nos confunde; nós somos gêmeos. Ele fez alguma coisa?

—Sim, ele...

—Desculpa, mas vamos ter que deixar essa conversa para depois, pois ele acabou de chegar. Não quero que ele pense que já fui embora. Tchau, garoto.

Paulo já havia chegado na festa há uns 15 minutos. Ele planejava não beber, mas acabou não resistindo à tentação e tomou duas cervejinhas.

Caio olhou fixamente para os dois homens, que ao longe conversam, pega o celular e faz uma ligação.

—Professora, sou eu o Caio. Ainda está disposta a denunciar aquele motorista? Ele está bem aqui na Rua das Tecelãs.

—Estou sim, com certeza!!!

—Pois vem rápido; acho que se o irmão dele for se despedir de todo mundo, que é o que está fazendo, a senhora chegará bem a tempo.

—Estou a caminho.

Uns 10 minutos se passam e a professora chega no local. Manda Caio entrar no carro e ele diz que o bendito motorista tinha acabado de sair com o irmão, mas que ainda era possível ver as luzes dos faróis traseiros. Então eles os seguem.

No carro, Pedro, por estar alcoolizado, papeava muito mais do que o normal.

—Ainda bem que temos um ao outro. Não sei o que eu faria se não tivesse você para tomar conta de mim.

—Você pegaria um táxi — os dois riem muito. Enquanto conversavam, um pingente de prata pendurado no tento do carro fazia pequenos sons quando balançava.

—Sabe que não foi isso que eu quis dizer. Ei, um garoto estava procurando por você hoje; parecia bem irritado.

Paulo perde a fala por um momento e logo inventa alguma desculpa; diz que nem tem ideia de quem seja esse garoto. Enquanto dirige, sua vista parece ficar um pouco embaçada. É como se ele perdesse intervalos de tempo enquanto dirigia. Um forte barulho também o incomoda. Ele tenta identificar o que é, mas uma luz em seu rosto o cega. Quando olha para o seu irmão, percebe que ele está aflito e que se joga ao volante, virando-o e, consequentemente, o carro bruscamente.

Depois de alguns minutos, Paulo percebe que capotou o carro. O veículo está completamente destruído. Ele remove o cinto e se arrasta para fora do carro; em seguida grita de dor: um pedaço de ferro atravessava sua perna. Nesse instante, ele olha para Pedro que está virado para o outro lado da janela; aparentemente ele está desmaiado. Paulo vira o irmão para poder olhar seu rosto e....

Samanta e Caio viram tudo de longe. Eles chegam no local alguns minutos depois e veem os gêmeos deitados no chão, um ao lado do outro. Paulo deve ter juntado todas as forças para arrastar o irmão para fora do carro.

—Meu Deus! Ele está sangrando muito!

—Por favor, salvem o meu irmão! — Paulo chora. Samanta olha para o corpo de Pedro. Um enorme vidro estava cravado no peito dele; estava morto.

—Caio, me dê sua camisa. — A professora pressiona a ferida de Paulo com o pano para minimizar o sangramento, enquanto Caio liga para a ambulância. O olhar do garoto confirma que aquela é a situação mais horrível que ele já havia presenciando. Depois de muito tempo, Paulo é levado ao hospital e, quando ia embora, a professora vê algo reluzente no chão; ela se agacha, observa o objeto por um momento e o guarda no bolso.

No dia seguinte, no hospital, Samanta visita Paulo, que tinha sido internado, mas já se encontrava em recuperação. A sala em que ele estava era repleta de azulejos, muitos brancos e alguns vermelhos, e equipamentos médicos.

—Veio para se gabar? — Paulo fala sem olhar para o rosto de Samanta; olhava apenas para o teto sobre sua cama.

—Acho que ninguém, nem mesmo você, merece isso que aconteceu.

— Ela se aproxima dele. — Eu estava errada. Eu disse que você se mataria, mas, em vez disso, você matou o seu próprio irmão. — Ela coloca algo na mão de Paulo. — Só espero que você tente tomar um rumo melhor desta vez e supere a enorme culpa que te consumirá

aos poucos. Adeus — ela vira de costas e sai da sala. Os olhos de Paulo estavam cheios de lágrimas, pois ele já sabia, pelo tato, o que tinha nas suas mãos, mas mesmo assim ele traz o objeto até o rosto: o pingente que seu irmão sempre tinha consigo e que guardava uma foto dos dois, quando jovens, abraçados e segurando um enorme peixe. Com certeza, Paulo, daquele momento em diante, agirá de maneira diferente no trânsito, só é uma pena que ele tenha aprendido do jeito mais duro.

Na escola, Samanta fala para os alunos que o tema da redação mudou; o novo tema é: “Educação no trânsito”. Depois de explicar tudo, a professora olha para o rosto de Caio, que estava no final da sala, e ele parece retribuir o olhar com um pequeno movimento do rosto, como se dissesse: “sim, eu estou bem”. Apenas os dois sabiam o que tinha ocorrido nesse terrível fim de semana.

Calbe Silva
Enviado por Calbe Silva em 06/01/2018
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