Dois lados
Existe uma expressão que diz " como isso é ruim".
Isso soa a coisa mais ridícula do mundo.
Eu estava voltando do exterior com uma amiga e a gente pousou em Recife. E de Recife para João Pessoa, podemos fazer duas rotas: Recife - João Pessoa, que são duas BRs duplicadas, ou podemos economizar 30 minutos ou mais ou menos 60 km, vindo por dentro dos canaviais. Durante o dia, porque é mais tranquilo... A noite é mais escuro e também tem as máquinas trabalhando e é mais perigoso.
Então estávamos vindo durante o dia, e passamos em uma cidade chamada Juripiranga, que em tupi guarani significa ave que canta.
Não é que eu fale tupi guarani, eu li a placa que dizia " bem vindo a Juripiranga, "ave que canta""
Juripiranga é uma cidade que deve ter cerca de 5000 habitantes. Uma clássica cidade do interior do Brasil. Como é uma cidade assim? É uma cidade que tem uma igreja, uma praça e uma rua com canteiro no meio que tem tudo: delegacia, prefeitura, câmara de vereadores, banco, farmácia, tudo acontece ali, as baladas, os casamentos, as conversas, tudo.
Então estávamos passando num domingo a tarde e havia um casal de mais ou menos uns oitenta anos, de mãos dadas, com os netos e os filhos ao redor, se balançando na cadeira.
Minha amiga disse:
- Que vida ridícula essa.. Esse homem sentado nessa rua. Acho que ele nunca saiu dessa cidade. Eu fico pensando naquela poesia de Drumond.
Eu disse:
- Qual?
- Aquela que ele fez pra cidade dele, mais ou menos assim, do tamanho de Juripiranga e diz assim: "Vem uma vaca/ Vai uma vaca/ Vem um jumento/ Vai um jumento." Ó vida besta, é só isso.
Parece um Haikai, tão simples e objetivo que é.
Eu então olhei pra ele e disse:
- Mas menina, quando eu tinha a sua idade , eu achava isso, mas agora, eu vejo diferente.
- Vê como?
- Eu estou vendo a mesma coisa que você, mas pensando outra coisa, inclusive em outra poesia de Drumond.
- Qual poesia de Drumond?
- É uma que diz assim: "a vida hoje/ só um retrato na parede/ mas como dói." Acho que um dia vamos olhar pra onde viemos e as memórias todas estão lá! Mesmo que eu tenha me deslocado para onde for, minhas raízes estão lá, naquele lugar onde eu aprendi, onde eu cresci, onde eu caí, onde eu roubei manga do vizinho, onde eu fiz traquinagens.
Isso não implica dizer que isso é importante, porque tudo é importante. O antes, o agora, o depois.
Mas o que me chama atenção, continuava eu dizendo a ela, sobre aquela cena, é esse casal aqui. Porque esse homem está tocando a esposa dele com uma delicadeza, que as pessoas deixam de se tocar quando casam... Então se aos 80 e poucos anos, se eu estiver demonstrando toda essa delicadeza que ele está demonstrando à sua esposa... Se aos 80 e poucos anos, quando as pessoas começarem a me evitar, porque eu me tornei repetitiva, e seus filhos e seus netos querem brincar ao seu redor, esse homem tem tudo, menos uma vida besta. Bestas somos nós duas, que achamos que porque estamos vindo do exterior, é grande coisa... Porque não importa onde estamos, mas com quem estamos. Não são lugares, não são paisagens, são pessoas. Não é a geografia externa que muda a minha alma, mas a geografia interior que muda minha alma. É ela que me permite ver o belo onde quer que eu esteja, ou ver o feio onde quer que eu esteja.
O que importa é como estou me transformando por dentro. Isso implica ter uma aceitação de mim mesma, pra que eu me pacifique, veja a beleza... Que eu me aceite.