Olhos Azuis

Bel acordava todo dia cedo. Era seu ritual: o café, a louça do dia anterior, a escova do cabelo milimétricamente colocada na pia do banheiro. Gastava um bom tempo a pentear os seus negros cabelos. E saia apressada, como se tomasse carona num furacão. Era atendente em uma livraria, mesmo com todo seu conhecimento em economia, teimava em continuar atendente: “faço o que gosto, não o que esperam de mim!”. Tinha seu espirito livre, e sonhava, sonhava com uma vida melhor que todos esperam alcançar. Já tinha chegado naquela idade (aquela em que todos te irritam perguntando quando vai se casar e ter filhos, um porre!) e só ignorava e esperava, esperava e ignorava. Olhava pela janela da lojinha, ali espremida entre tantas construções, esperando que sua metade, tampa da panela, amor da vida, etc passasse.

E nada. Não passava nem cliente na loja. E Bel ficava ali, dias e dias a tirar o pó e a reclamar do ar condicionado que, vez ou outra deixava aquele pequeno lugar um inferno de tão quente. Livros e calor, Uhuulll, que combinação deliciosa. Em frente a lojinha, que aliás tinha o nome sugestivo de “Toca dos livros” tinha uma praça. Não era lá uma praça, mas um amontoado de banquinhos de cimento, umas mudas e árvores aqui e acolá, uma torneira velha e um escorregador. Eram dias quentes aqueles e Bel queria (precisava!) se refrescar. E lá foi ela, com sua marmitinha na mão, aquele sanduíche prensado que, se não tivesse escovado tanto o cabelo teria ficado ideal.

E Bel sentou ali e tornou aquele lugar seu. Era bem a vista da loja, o gerente podia gritá-la a qualquer momento. Embora ali, no meio daquele barulho, ela encontrava um momento de paz, de regozijo. E passava todas as tardes naquela praça. Ouvia o barulho dos carros, crianças brincando. O barulho dos pássaros, cachorros e gatos. Era barulhento sim! Mas ela adorava, pois sentia-se em paz no seu mundo. Aí veio o frio, e mesmo assim Bel não arredou o pé do seu recanto. Sentava no banco gelado, com as pernas tremendo, mãos geladas e ainda assim, ficava ali, na hora de seu almoço, no fim de sua tarde. Bel amava aquele lugar, mas já não tinha o mesmo encanto, faltava algo, algo que a fizesse saltar o coração, tão acostumado a solidão.

E o inverno passou. E veio a primavera e aquele cheiro doce de mato. O ventinho ameno que soprava e dava a Bel a sensação de leveza. Podia me apaixonar! Pensava. E ria como quem risse de uma boa piada. Um belo dia Bel foi a praça, mas seu lugar estava ocupado. Um moço sentou lá e por ali ficou por horas. Ela sentiu-se incomodada. Ninguém ia a aquele lugar, era tão seu. E sua timidez falava mais alto. Contornou a praça, sentou no outro banco, cara amarrada e por lá ficou. E no dia seguinte, e no outro e no outro, a mesma coisa. Bel não olhava o rosto do moço, mas um dia resolveu encará-lo. Se eu encarar ele, talvez vá embora! Pensou. E pois em prática seu plano. E para a surpresa de Bel, aquele momento acabou se tornando o mais estranho de sua vida: Olhava o moço e ele de cabeça erguida, sorria. Mas ficava ali, sorrindo o tempo todo, quem fica sorrindo para alguém o tempo todo? Reclamou com o gerente. Vai ver ele gostou de você Bel, você é tão bonita!

Bel não se achava bonita, erra mesmo acanhada. Mas a fala do gerente despertou pensamentos diferentes e todo dia, sentava no banco e sorria para o rapaz do outro lado da praça. Ajustava o cabelo com aquele olhar de timidez e fitava o moço que, só devolvia o sorriso. Começou a notá-lo mais. Sua camisa, calça, era alto, talvez, pensava, pois o via sempre sentado. E tinha olhos azuis, meu deus, que olhos azuis! Embora tinha dias que ele ficava de óculos escuro. Por que o óculos se o dia não está tão ensolarado?

Aquele flerte foi mexendo com Bel, ela queria mais, saber o nome do rapaz, saber porque estava ali todo dia e só dava sorrisos a ela. Já estava para voltar o verão e Bel resoluta pensou: Hoje falo com esse moço, preciso saber qual é a dele?

E Bel foi na praça, pisava forte, como indo para a batalha. Mas a cada passo da praça, a perna ficava bamba, a garganta seca, parecia que ia sufocar. Mesmo assim vou tentar! E foi e, como não fez durante meses, parou em frente ao moço e ele ali, sorrindo, de repente fechou a cara. Olhou para o lado, olhou para o outro e disparou assustado: Oi?

Oi, eu sou a Bel, a moça pra quem você sorri! E estendeu a mão. Não houve retorno do aperto e Bel se assustou. Olhou nos olhos do rapaz e percebeu que ele estava assustado. Parecia que olhava longe ou olhava através dela. Sentiu o chão abrir de tanta vergonha e naquela saia justa resolveu virar as costas e sair. Desculpa, sou cego, você me cumprimentou? E Bel sentiu-se ainda mais envergonhada, que as palavras não saiam. Sim, Sim! Te cumprimentei, mas desculpa te atrapalhar, eu vou ali... “Pro outro lado da praça, né? Dá pra sentir o cheiro do seu perfume de lá, é tão gostoso! Desculpa, sou Gael!”

E Gael sorria, com o barulho da praça, com o que ouvia, mas sorria ainda mais com o perfume de Bel, que ele queria tanto conhecer. E Bel voltou a sentar naquele banco, mas agora tinha a companhia de um cego e charmoso rapaz de olhos azuis. E aquela praça nunca foi tão bela para Bel.

Dom Torres
Enviado por Dom Torres em 03/01/2018
Código do texto: T6215724
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