Sapatos novos!
De onde vem o prazer de possuir coisas? Do desejo de ser invejado? (Será irmão gêmeo da vaidade?)
Imagino, no "tempo das cavernas", a "socialite-troglodita" exibindo para sua vizinha de caverna, a “pele de Tigre-Dente de Sabre”novinha, sangrando ainda, ou a planta rupestre da sua nova caverna duplex com vista pro pântano. Já nesse tempo se ficava roxo de inveja? Não sei se vem daí, mas o fato é que ganhar, comprar, conquistar, enfim, ter, não importa por que meios, algo "novinho em folha" e sabê-lo só seu, está, sem dúvida, entre os maiores prazeres das culturas ocidentais no planetinha azul.
Lembro-me da inconfundível sensação de ganhar um sapato novo (ainda que fosse aquele modelo que comporia o uniforme escolar). O cheiro! hummm! Sapato novo tinha um cheirinho! Até as sandálias da famosa marca que "não tem cheiro, nem soltam as tiras" tinham cheiro. Era o céu! Seria. Paradoxalmente começava ali a via crucis que era possuir algo novo. Primeiro dos dilemas: Pô-lo no chão. Como algo tão novinho, com aquela sola brilhante, com desenhinho e tudo, iria parar naquele chão sujo e áspero? Inevitável? É mesmo? Então tá. E com que roupa? Pois é, sapato novo tinha que ser usado com roupa nova! Não dava pra imaginá-lo acompanhado daquela já surrada calça do ano anterior ou do conjunto usado na última festinha do colégio. A única coisa velha permitida ao seu lado seria aquela "nesga" de "jeansbotado" na calça Lee, mas a calça tinha que ser nova!
Não era eu quem chegava, era o sapato. Sem ele eu não existiria! E logo alguém ou alguma coisa começava a ameaçá-lo. Uma pedra no caminho nunca seria apenas uma pedra no caminho. Imaginar um chute numa pedra com aquela preciosidade? Melhor que acontecesse descalço (Dedos cicatrizam em dias!). E aqueles amigos que insistiam em chegar perto demais para um simples cumprimento ou abraço? "Pra que esse carinho todo? Vão acabar pisando no meu sapato". E ainda havia o risco de quererem fazer com o sapato o que faziam quando os cabelos eram cortados (seria inimizade para trinta dias ou até que o sapato não fosse mais tão novo). Quando algum esbarrão, mesmo que o mais superficial e inócuo acontecia, ficava no local a sensação de que houvera ali uma amputação e a "dor" permaneceria até que houvesse uma ainda que mal disfarçada passada de mão, ou mesmo um esfregadinha do pé atingido na perna oposta da calça, na tentativa de amenizar tão inaceitável mácula.
Não sei se ainda é assim (faz tanto tempo que não compro sapatos novos!), mas os sapatos (os tênis e até as sandálias) novos, faziam...Calos! Daqueles que formam bolhas! Hiper doloridos! E ainda assim eram tão amados, que por um bom tempo guardávamos as caixas (Não faço a menor ideia do porquê, afinal, eles não voltariam pra dentro delas). Talvez fosse isso uma espécie de atestado, garantia, uma forma de manter-lhe assegurada a certeza de ser ele ainda novo. Falando nisso, atormentava-me à época (e ainda o faz), uma dúvida: Até quando, até que ponto, alguma coisa é nova? Qual o prazo de validade do "selo de novidade" para os objetos (e até para as pessoas) em nossas vidas? Seu carro zero, será zero ainda depois de ter rodado seus primeiros quilômetros? A namorada (o) será a (o) "nova (o)" até quando? E o emprego? E a vizinha? O que define algo como ainda novo, após ter sido ele "usado" pela primeira vez? Será o cheirinho? Carro novo, por exemplo, tem cheiro de novo. Irrecuperável, diga-se de passagem. Acho que nem as fábricas sabem que cheiro é aquele. Ou sabem! Se sabem não o revelarão. Perderia a graça um carro qualquer com aquele cheiro. Acabou o cheirinho, deixa de ser novo! Como os sapatos, quando lhes jogávamos fora, as caixas.
Às vezes me parece mesmo que prazer e dor andam de mãos dadas. Sempre há um paralelo em tudo que se vive de um modo ou de outro. Como o primeiro pisão no sapato novo, o primeiro arranhão no carro novo, a primeira briga com o amor novo, etc. etc. até chegar-se ao antagonismo entre a vida e seus prazeres e a inevitável partida definitiva e sem destino conhecido. Talvez fosse mais simples e menos doloroso que todas as coisas novas viessem a nós com um arranhãozinho "de fábrica", alguém que as "amaciasse" antes, que pelo menos nos evitasse os "calos".
Pensando bem, melhor não. Não teríamos o prazer de a usar a "pele de Tigre-Dente de Sabre", "ainda sangrando" ou de ser dos poucos privilegiados a ter a caverna virada pro pântano. Não teríamos a inveja alheia a alimentar sua carente e faminta irmã gêmea: A vaidade!
Talvez nem fossemos mais trogloditas!
Julio Miranda