Os amantes

Nunca dantes havia me machucado tanto o fato de eu ser eu. Parece que todos resolveram que eu causo-lhes mal-estar. Como se tudo que faço seja para ferir. Faço. A mim.

Sinto-me como se nem a morte me quisesse, como se fosse tão repulsiva quanto o hediondo, a morte, essa morreria mil vezes antes de me querer. Eu a quero. Mas só por orgulho, não mais. O Orgulho? Esse também repudia minha existência.

Como consegui chegar a esse ponto? Como não percebi que minha vida estava decorrendo, e eu, aproximava-me mais, e cada vez mais, do precipício, o qual nem me queria, mas eu teimosa como sempre, insistia em desejá-lo, insistia em permanecer. Permanecer para quê? Só para reafirmar essa tal coragem, que de nada me serve?

Por vezes tanto desejei, eu almejei deveras ser corajoso, ser herói, ser estimado, e este foi o meu erro. O herói é aquele a quem todos veneram, sem ansiarem realmente ser ele, precisam que ele exista para travar as batalhas que eles, covardes que são, não conseguem. O herói é aquele que se sacrifica por outros que não o merece. O que sacrifiquei?

Sacrifiquei minha meiguice, minha abnegação, mas como poderia viver num mundo sobrecarregado se assim não o fizesse, assim como deveria ser? Isso que dá fingir-se forte, corajosa, pois sempre encontrarão um jeito de te subjugarem e dirão: “vês como é insignificante? Como podemos te ferir ainda mais, mais do que feres a teus inimigos?”. Transpassaram-me com palavras vivas e cortantes, mas agudas que as espadas que utilizo, feriram-me o fígado, e torceram-me ao punhal.

Morri mil vidas, vivi mil mortes, as quais nem me percebi estar. Nem percebi que fui tudo quanto quis, que esse meu destino foi traçado por mim. Eu caminhei para minha própria degradação – construída por mim e para mim – e fui matando aos meus “inimigos” pelo caminho. Só me esqueci de verificar se estavam realmente mortos, ou se haviam testemunhas - as testemunhas poderiam rebelar-se. E rebelaram-se. Vingaram a morte dos vitimados. E como tornaram-se carnífices. Minhas criaturas. Meus opróbrios.

Apesar de amar minha concupiscência, que prazerosa companhia fazia-me nas batalhas, sabia que nossa relação mutualista chegaria ao ponto de tornar-se imprópria. Era imoral, incomum. Não poderia ser pior. Eu a utilizava como instrumento de meu deleite, e ela a mim, como seu brinquedo mortal. Nada do que eu quisesse empregar de bom me deixava, eu a ela também. Éramos ciumentos. Incorrigíveis. Caso inóspito.

Finalmente eu tive um amante que me queria, queria me transformar. Em quê? Eu não sei, mas eu acreditava nele, se ele dizia que era bom, eu acreditava. O chamavam de “coerente”, ser superior, de racionais ações. Meu guia. Meu amor. Mas até ele cansou-se de mim, viu que não conseguiria concluir sua missão: a minha mudança. Não o culpo, até eu desistiria de mim. Minhas companhias atuais? São as testemunhas e meus inimigos ressurretos. O melhor relacionamento que existe.

Ah... Segredo-lhes que encontro-me às escondidas com a concupiscência, não consigo esquecê-la. Só não com o coerente, pois não me quer.