Doce Vida
 Nair Lúcia de Britto 



Hoje de manhã eu acordei com saudades da minha infância. Do tempo em que eu morava com meus avós na rua Campos Melo, em Santos. Lembrei daquelas manhãs ensolaradas que iluminavam os paralelepípedos limpos e daquele cheiro gostoso de tranquilidade...

Todas as manhãs o padeiro vinha trazer pão fresquinho, crocrante à porta e o litro de leite num recipiente de vidro. Quando a minha avó tirava a tampinha, tinha aquela nata consistente na borda. A manteiga que a minha avó passava no pão que ela me oferecia, era uma delícia!

Naquela época as feiras não existiam. Era o verdureiro quem vinha trazer, numa carroça, verduras frescas, sem agrotóxico (que também não existia) e diversas frutas.

Minha tia avisava para a minha avó:

-- Mãe, o verdureiro chegou! Lá ia eu correndo atrás da minha tia e da minha mãe, ajudar a escolher as frutas... Goiaba não precisava, porque tinha bastante lá no quintal. Abóbora também.


A hora das refeições era a hora mais sagrada do dia. Ninguém começava a comer, enquanto não estivessem todos à mesa. Meu avô impunha silêncio absoluto, agradecíamos a Deus pelo alimento e saboreávamos a comida feita a muitas mãos.

Na esquina, tinha sempre uma vendinha, uma quitanda, uma padaria, uma banca de jornais, na qual eu comprava figurinhas e revistas em quadrinhos. Para as moças, tinha revistas de fotonovelas. Pornografia, mulher pelada na capa de revista: isso também não existia...

O amolador de facas sempre passava pela rua, tocando um instrumento musical muito peculiar ao seu trabalho. Minha mãe, que era costureira, aproveitava para amolar suas tesouras. Fazia vestidos para a minha avó, para suas irmãs, para mim... Foram os vestidos mais bem-feitos que eu vesti na vida! Com esmêro, com carinho jamais vistos; pelo menos por mim.


A casa era um sobrado, com um belo terraço onde as samambaias caiam verdejantes de dois grandes vasos. Meus avós gostavam de sentar-se ali, depois do jantar, para apreciar o luar e o movimento da rua. A distração das pessoas era essa; apreciar as estrelas no céu, o frescor da noite e jogar conversa fora... Televisão também não havia...

Meu pai trabalhava no interior de São Paulo, lá pros lados de Atibaia e só podia vir pra casa nos finais de semana. Eu ficava esperando por ele, ansiosa, sentada no portão. Ele chegava cheio de saudades e de brinquedos. Era uma festa! Ele nos levava eu e minha mãe para almoçar num bom restaurante e, depois, passear. Duas tias minhas (Ernestina e Olga) sabiam tocar violão e cantar. E, nas noites de sábado, depois do jantar e da sobremesa, toda a família se reunia na sala de visitas para ouvir suas lindas canções... Todos nós cantávamos junto. Eu também!

Talvez seja a lembrança desses momentos tão agradáveis e preciosos da nossa família que até hoje eu adoro escutar um violão. Aos domingos eu ia a “matinée” do cinema de bairro. Passava sempre dois filmes com um intervalo no meio. Antes do segundo filme, passava um seriado do Batman, do Tarzan ou do Homem Aranha. Eram filmes de aventura, inocentes, que acabavam sempre num momento de suspense total; mas a continuação da história a criançada só poderia ver na tarde do domingo seguinte.

Em vez de ônibus, o meio de transporte era o bonde. Eu achava divertido viajar no primeiro banco. Meu pai gostava de viajar de pé, no estribo; minha mãe guardava o chapéu dele (complemento indispensável do terno e da gravata) sobre o seu colo; e lá íamos os três, nos divertindo a valer com aquele simples passeio de bonde!

O portão da nossa casa não tinha tranca. Não precisava... Não se ouvia falar de assaltos, nem de violência.
-- Olha lá o carrinho do algodão-doce, pai! Me compra? Que doce era aquele algodão-doce!
Que doce era aquela vida! 


São Vicente, 07 de setembro de 2008 
 
Nair Lúcia de Britto
Enviado por Nair Lúcia de Britto em 26/12/2017
Reeditado em 26/12/2017
Código do texto: T6208805
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