Dançando sem música
Nas minhas passagens pelos escaninhos da memória, de vez em quando me vem à lembrança a figura daquele aluno, que certamente estaria no mais obscuro esquecimento não fosse por um episódio ocorrido lá no início de minha carreira.
À época, eu me preparava bem e ia ensinar no fundamental, em um dos maiores colégios de nossa cidade – a tradicional Academia. Embora muito jovem, os assuntos me eram relativamente simples, até porque na universidade eu aprendia com o Weitzel, com o Dionísio, com o Levi, com a Nadime, com o Gaio – referências no ensino superior na área de Letras. Além do mais, tinha bons amigos como o Vicente Aguiar, que me subsidiava em eventuais embaraços.
Quando vejo, hoje, que os professores têm dificuldades na gestão da disciplina escolar, lembro-me de que eu também as tivera (ainda as tenho!) naqueles idos anos de 1970, na Academia – nada que impedisse a aula de se realizar, mas certamente alguns momentos me eram mais trabalhosos e requeriam do jovem iniciante calma e palavras de advertência, ainda que com certa leveza. Nada como a boa conversa!
Colégio de classe média alta, ensinei para alunos bem abastados quando comparados ao humilde professor, que – à custa de sacrifícios dos pais – frequentara no ginásio o mesmo colégio.
Era comum eu chegar e ser muito assediado pela gentileza de algumas alunas que lutavam pelo privilégio de levar minha caixa de giz da sala dos professores à sala de aula. Nada tão desnecessário... Mas o adolescente... Grupo acalmado. Ambiente propício às explanações.
Escrevia eu na lousa e voltava-me para a turma, captando reações. Tudo na plena tranquilidade. Até que... Lembram-se de que referi um aluno? Seu nome era Bartolomeu. Era claro e era forte; nos seus treze anos, certamente mais forte que o franzino mestre, que solenizava as explicações ostentando um paletó e usando uma barba, que me tornava mais velho diante daqueles jovens.
Ouço um alarido e me volto rápido para o grupo, flagrando Bartolomeu puxando insistentemente uma das frágeis meninas para um passo de dança, sem música. A jovem não reunia forças para manter-se sentada. Ato contínuo, Bartolomeu ouviu meu grito forte e a ordem peremptória: - Saia daqui! Procure a coordenação. Saia! Saia!
Parei e o vi caminhar pelo longo corredor entre as carteiras (ele estava na última); chegando a mim, encarou-me e verteu copiosas lágrimas, hesitando em sair... Diante do choro, que me valeu por desculpas, meu coração amoleceu:
- Volte para o seu lugar; está perdoado...
Omiti o acontecimento da direção e do conselho de classe e registro que Bartolomeu passou de ano - creio eu que nunca mais tenha sido desrespeitoso.
Não mais o vi. Não sei se estava entre os mais ricos da sala ou se, como eu, quando fora aluno da Academia, lá estudava com dificuldades. Prefiro acreditar que fosse menino humilde, um menino que chorou ante o malfeito, imaginando, naquela fração de segundos, a contrariedade que daria aos pais. Revi uma decisão em momento de raiva e nem por isso perdi a atenção de meus alunos nos dias que se seguiram. Creio até que foram melhores.