Viena quando longe

Se um dia eu conseguir me manter, se um dia eu tiver um dinheiro a mais do que o das despesas, e se alguém achar que eu tenho direito a férias, então é bem possível que viaje até Viena. Lá viveu um dos meus antepassados, o velho Friedrich Fendrich, e eu iria gostar de conhecer os lugares em que ele esteve. Até porque ainda está tudo de pé, nem parece que o tempo passou. Já há 150 anos, era em prédios que o velho Fendrich vivia, e pagando aluguel, igualzinho a este seu descendente. Um dos prédios em que ele viveu fica em Gumpendorf, o mais antigo subúrbio de Viena. Na rua do seu prédio, viveu gente como a bailarina Fanny Elssler, o pintor Joseph Eugen Hörwarter, o escritor Ludwig Anzengruber. Nessa época, metade dos moradores de Viena era ilustre. Hoje em dia há, no térreo do prédio em que Fendrich viveu, um café e restaurante, onde eu certamente iria fazer uma refeição, se para lá fosse, se eu tivesse dinheiro.

Entraria na igreja, como não entrar na igreja de Santo Egídio, a igreja em que Fendrich se casou, a igreja em que foi consagrado, no dia seguinte ao de sua morte, o corpo do compositor Joseph Haydn? Depois os Fendrich se mudaram para Margareten, distrito vizinho, e passaram a frequentar outra igreja, uma ainda mais chique, inaugurada pelo imperador Joseph II e sua mãe Maria Teresa da Áustria, e que conta com um órgão tocado pelo próprio Schubert. E dizer que foi desse meio que vieram os Fendrich!

Mas eles eram humildes operários, ele apenas um sapateiro, ela empregada doméstica, gente vinda de fora e que em Viena aceitava as condições que os próprios vienenses já não podiam aceitar. Há muito em comum com a minha própria história, também sou um pobre homem do interior que veio tentar a sorte na capital, que mal e mal consegue sobreviver.

No prédio preto em que a família Fendrich foi moradora em Margareten existe em nossos dias um restaurante português. É incrível: quer dizer que eu posso visitar o prédio em que os Fendrich viveram e ainda falar português com aqueles que lá trabalham. Eis um grande alento, já que meu estudo de alemão não foi para frente, tive que desistir das declinações. É uma pena apenas que não poderei conversar com o velho Fendrich em um possível encontro no além, pois o homem só falava alemão, e ainda um alemão com fortíssimo sotaque de Viena. So ist das Leben!

Dizem que os Fendrich tiveram oportunidade de assistir a muitos desfiles de Corpus Christie em Viena, desfiles que contavam com a participação do próprio imperador Franz Joseph. Tudo isso deve ter impressionado muito o velho Fendrich, que depois, já no Brasil, presidiria uma associação de austríacos e organizaria vários desfiles em honra ao imperador. Eu mesmo, tão livre de nacionalismos, de certo teria me tornado ferrenho defensor da dinastia dos Habsburgos, se vivesse também na Viena do século XIX.

Mas os Fendrich deixaram Viena, os Fendrich vieram tentar a sorte no Brasil, o que mostra que, de certo, a vida não lhes era fácil por lá. Mesmo assim, talvez não tivessem vindo se não fossem as cartas tão exageradas enviadas pelos parentes que já viviam em Santa Catarina. Falavam como se tivessem achado o paraíso que o velho Adão nos fez perder. Vieram os Fendrich e se deram conta do que fizeram, trocando uma cidade de 700 mil habitantes por uma colônia no meio do mato, sem escola, sem médico, nada.

Voltar já não podiam, trataram de se ajeitar da melhor maneira. O velho Fendrich era “o homem de Viena”, tinha um pouco mais de cultura e foi escolhido para professor das crianças locais. E desde então não houve mais Fendrich em Viena, a não ser por um astro pop, chamado Rainhard Fendrich, que canta coisas como “I am from Austria”, e que não sei se é parente, mas, por via das dúvidas, é a quem devo recorrer caso precise de acomodação na cidade.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 24/12/2017
Reeditado em 24/12/2017
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