A Garota de Longos Cabelos Loiros
Não é segredo algum este choque, este, que sentimos nos olhos, causado pelo contato com a luz do dia após longas horas de sono. Por isso gosto desta penumbra deixada pela cortina da janela, ficar assim, deitado no chão do quarto, em meio ao claro-escuro, pode parecer até anormal, mas ainda humano.
Então desço as escadas, tomo um pouco de café, preto, morno, porém revigorante. Ligo a TV apenas pelo prazer de deixá-la falar sozinha, enquanto lavo as manchas de lama do meu sapato. Termino, tomo banho, como qualquer coisa e vou trabalhar. E isso se repete por dias. Ainda que a vida assim não me pareça sedutora, ainda que eu seja livre para mudar, chega um momento onde os dias se assemelham mais a uma condenação. E esta é a minha: Penumbra, choque nos olhos, café morno, TV falando sozinha, roupas, comer e ir trabalhar.
Os anos vão passando, a gente vai ficando velho e, com a velhice, a gente sente que tudo vai ficando igual. Falo não somente da vida vivida, dos hábitos diários, mas deste ciclo que se repete anualmente. Hoje o Natal é próximo, logo chegará Réveillon, e então Carnaval, o que pra muitos significa o início do ano, depois a Páscoa, dia do Trabalho, dia das Mães, dia dos Namorados, São João, dia dos Pais, das Crianças, dos Mortos, Natal, Réveillon e tudo outra vez e novamente e novamente e novamente. Com isso nos acostumamos pouco a pouco a esta vida resumida nas folhas dos calendários. Vez em outra, surgem umas lembranças em nossas mentes, de épocas onde éramos tão diferentes que até parecem ser de outras vidas.
Não faz muito tempo, eu pegava o ônibus naquele determinado ponto, logo após o almoço, debaixo de um sol escaldante, e passar por ele ontem me trouxe um sentimento estranho. É que na minha época de menino a minha família trabalhava ali perto, em meio a várias barraquinhas, eu passava quase o dia inteiro ajudando. Foi quando a conheci: A garota de longos cabelos loiros. Ela era bem mais velha que eu, estava todos os dias naquele ponto, depois do almoço, debaixo de um sol escaldante. Seus longos cabelos voavam pela calçada enquanto ela esperava a condução para ir à escola. Ela foi um dos meus primeiros amores de infância.
Eu acordava pensando nela, estudava empolgado pra vê-la à tarde e almoçava rapidamente, pois não queria deixar de vê-la por conta de alguns minutos. Nos dias em que não a via, ficava tristinho pelos cantos, embora confiante a tentar no dia seguinte. Eu nunca falava com ela, apenas sentava num local próximo e ficava vendo-a, tímido por não saber o que dizer. Com o tempo, esta rotina, a de aguardá-la, me fez conhecer boas pessoas, depois que ela partia eu costumava brincar na praça e subir nos pés de manga, havia sempre algo diferente acontecendo, embora o que realmente me tirava o sono fosse a garota e seus belos cabelos longos, e loiros.
Estando novamente naquele ponto de ônibus, pude lembrar-me dela, coisa que nunca havia feito depois de grande. Inevitavelmente, notei que a rua já não é a mesma, as barraquinhas não existem mais, o nome, a cor, o número e o motorista do ônibus também mudaram. Eu, irreparavelmente, mudei. E a garota de longos cabelos loiros já não está lá, ela, como eu a lembro, deixou de existir a tempos.
Voltei para casa. Tentei por horas lembrar quando ela se foi, como essa pequena parte de minha vida havia chegado ao fim. Mas este é outro problema trazido pelo tempo, falo dessas sucessivas mortes de nós mesmos, esse apagar-se e ascender-se de lembranças. Pois, assim como deixei meu 'Eu menino' naquele ponto de ônibus, deixo vários outros — todos os dias — por esta casa, suas paredes, esta cama, pelo chão, por lugares por onde passei, corpos que toquei — e que também me tocaram. Entendo agora que não basta revisitar tais locais, ou pessoas, tem coisas que se vão e se vão para sempre. Assim foi com aquela garota. Partiu. Levando consigo o que havia de bom em mim, deixando apenas uma lembrança, a de seus cabelos longos, e loiros.
Obrigado a todo que me acompanharam em 2018!
Até mais ler...