PERFEIÇÃO É COISA DE MENININHA

Interessante a forma como chega ao divã, impecavelmente arrumada, um vestido discreto, porém elegante, com cada coisa em seu devido lugar, como quem vai para um baile e não pode esquecer nenhum detalhe. Sua pele era oleosa, era possível ver o uso do primer para bloquear a oleosidade e evitar que a maquiagem agredisse a pele, o BB cream, a base, o corretivo, o pó compacto, o pó translúcido, o blush, as sombras, o lápis, o delineador e o batom, demonstravam em cada detalhe usado a atitude e estilo daquela mulher, tudo estava no mais perfeito controle, nada escapava dos mínimos detalhes, mas sua alma era vazia.

Nelson Rodrigues chega a ser cruel quando define que perfeição é coisa de menininha tocadora de piano, pois justo o que nela era elogiável estava seu sofrimento, na busca da perfeição em sua vida, encontrava apenas o vazio da solidão. Conselho de Salvador Dalí: “Não se preocupe com a perfeição - você nunca irá consegui-la”.

Ela me fez lembrar um jovem príncipe que procura Jesus e estabelece com ele um diálogo prazeroso e inquietante, pois deseja o Reino dos céus. O mestre é objetivo e direto: “Se você quer ser perfeito, vá, venda tudo o que tem, e dê o dinheiro aos pobres, e assim você terá riquezas no céu. Depois venha e me siga”. Aquelas palavras suaram no ouvido daquele jovem com uma grande ressonância de verdade, não podia abandonar o que havia conquistado tão arduamente, não podia abandonar aquilo que lhe dava significado, isto perturbou e o fez se afastar, com muita tristeza em seu coração.

“Você quer o que você deseja?”, pergunta feita pelo psicanalista Jorge Forbes e que parece até um pouco óbvia, afinal se queremos é claro que desejamos, mas não é tão simples assim, uma parte de nós quer, mas outra parte, que é inconsciente, nos mantem numa condição de não conseguir realizar o desejado. Há o desejo, mas falta a permissão ou a capacidade emocional para fazer o desejo acontecer. O Mestre diz que a porta é estreita, é preciso ver valor em coisas que vão além do materialismo, da posse, da conquista que enfatizam nossa condição de ambição e de orgulho e nos distraem da grande verdade: “Nem só de pão viverá o homem”, é essa a mensagem esquecida.

Ela quer ser perfeita, mas seu desejo evidencia a impossibilidade desta busca, como diz o poeta Fernando Pessoa: “Adoramos a perfeição, porque não a podemos ter; repugna-la-íamos se a tivéssemos. O perfeito é o desumano porque o humano é imperfeito”, é justamente por causa de nossas imperfeiçoes que muitas coisas que desejamos não nos permitiremos possuir, uma parte de nós acredita que não merecemos ou mesmo que não temos esse direito. O Mestre não condena o jovem, afinal é próprio dos jovens os sonhos utópicos, mas é bem claro quando conclui que não entra nos céus quem já está cheio de riquezas, é preciso esvaziamento.

Em seu livro Jorge Forbes deixa claro que há duas maneiras de evitar tomada de decisão: pela certeza da ciência ou pela religião. Ele estava certo de que seu desejo seria realizado, pois cumpria cada rito exigido pela religião, Jesus o confronta e lhe diz que falta algo mais, precisa olhar para além de si mesmo, precisa enxergar os outros. O narcisista é incapaz de enxergar além de si, como diz Caetano Veloso em sua bossa Sampa: “Narciso acha feio o que não é espelho”.

Para chegar à busca da realização de seu desejo, o jovem corre, diz o texto, desejo não realizado, ele se retira lentamente e triste. Tomar decisão nesta contemporaneidade é uma questão que responde à ética do desejo e não à do dever. Ele não pode realizar seu desejo porque seu querer estava preso a deveres, tinha propriedades. Ela chega e diz que em tudo é perfeita, mas sofre com seus amores, me fez lembrar a canção do Chico: “Quero pesar feito cruz nas tuas costas, que te retalha em postas”, era assim que se sentia, mas estava presa a este relacionamento à deveres, havia com seu parceiro uma dívida de gratidão, não podia falhar com a ética do dever, mas isto a fazia sofrer, pois seu relacionamento era incompleto, tinha falhas, não pode haver tesão e desejo onde existe gratidão e portando, culpa.

Queria um amor perfeito, queria viver o Reino dos Céus. “O amor só vive pelo sofrimento e cessa com a felicidade; porque o amor feliz é a perfeição dos mais belos sonhos, e tudo que é perfeito, ou aperfeiçoado, toca o seu fim”, escreve com maestria Camilo Castelo Branco. Queria um amor feliz e completo como o jovem da parábola, seu inconsciente o advertia de que não estava fazendo o necessário, mas quando o desejo exige que se abra mão da doce ilusão do conforto, quando seu desejo lhe coloca à prova, não tem coragem de fazê-lo. Nunca se tratou de abrir mão daquilo que se é, mas sim de entender o perigo de colocar toda esperança na ilusão transitória da completude, afinal não há perfeição neste mundo e muito menos no amor, não se controla o amor.

De fato queremos o que desejamos ou apenas queremos aquilo que imaginamos que querem que queiramos? A verdade é que há muitas pessoas que esperam muita coisa de nós, mas quando não estivermos mais aqui, eu que penso que sou suficiente para muita gente ficarei surpreso que cada um seguirá sua própria vida, em nada dependerão de mim. “Podem rezar latim sobre o meu caixão, se quiserem. Se quiserem, podem dançar e cantar à roda dele. Não tenho preferências para quando já não puder ter preferências. O que for, quando for, é que será o que é”, escreve Alberto Caeiro em seu poema Inconjuntos. Ou saio triste como o jovem que descobre que seu desejo ia além do que queria, ou tomo a atitude de não permitir mais que o medo domine meus sentimentos, criando comportamentos que impeçam de viver o desejo que há dentro de nós.

Jairo Carioca, escritor e psicanalista, autor do livro "Crônicas de um divã Feminino" pela editora Autografia e que já se encontra à venda nas melhores livrarias ou pelo telefone (21) 995702931. http://www.recantodasletras.com.br/autores/jairocarioca

Jairo Carioca
Enviado por Jairo Carioca em 21/12/2017
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