UM REI DEGOLADO
Da série:Memórias da minha rua
Pequenos contos de natal (dezembro 2008)
À cada vez que eu cruzava em frente àquela loja,aflorava-me um velho sonho de consumo.Tão somente sonho,uma vez que o "produto monetário",quando aparecia arraigava-se aos bolsos de meu pai e dali não saía com muita facilidade.
Tinha eu entre meus 8 à 9 anos de idade ,o desejo de montar um presépio nos moldes daquele que montava-se todos os fins de ano na casa de dona Avelina, nossa vizinha.
Fazia-nos companhia no jantar daquela noite,um compadre de meu pai.Aproveitei-me da ocasião e cantei a pedra:
-Quero comprar um presépio que vi na vitrine da loja tal,...Blá,blá,blá...Blá,blá,blá...
As respostas vieram-me feito um furacão:
-Endoidô,menino ?...Isso custa caro ! disse-me mamãe.
-Ele pensa que dinheiro "dá em pencas", enfatizou papai .
-Essa piazada de "hoje em dia" quer tudo o que vêem!... Complementou o medioso do compadre, quase engasgando-se com uma folha de alface(Que eu havia plantado, diga-se de passagem).
Calado externamente,(proferindo alguns impropérios em pensamentos) retirei-me da mesa e fui para o meu quarto.Como nunca fui de entregar o jogo no primeiro tempo comecei a arquitetar um plano e já na manhã seguinte estava eu de casa em casa , vendendo ameixas pela vizinhança.
Em pouco mais de duas semanas havia conseguido dinheiro suficiente e mais algum excedente para uns consumismos extras.
Quase gaguejando, tal era a emoção ,me dirigi ao balconista da dita loja :
Quanto custa aquele presépio ?
- Trinta e nove mil cruzeiros . Respondeu-me.
Vou levá-lo .
Com uma certa desconfiança olhou-me , enquanto eu metia a mão no bolso retirando um calhamaço de notas esparramando-as sobre o balcão de vidro .
Sob o olhar atento de dona Tereza ,a dona da loja ,o balconista deu uma cusparada entre os dedos e começou a contar aquele "rolo" de notas ,que ultrapassava o valor do objeto solicitado.
(Com o excedente adquiri alguns agradinhos para o pessoal de casa)
Retornei empurrando a bicicleta com todo o cuidado para não correr o risco de derrubar o precioso invólucro.
Feliz pelo caminho ,sentia-me um bem sucedido empresário do ramo de "horti-fruti".No meu caso, tão somente "fruti" já que hortaliças eu as plantava apenas para consumo próprio (e de alguns compadres "mediosos" de meus pais).
Presépio montado, obedecendo aos exageros de dona Hilda, minha mãe.
(montanhas, pontes, patos....folhagens, ninhos...Uma parafernália ! )
Ficou bonito ! Fez sucesso pela vizinhança.
À cada novo ano ,inovações eram introduzidas. O lago de espelho , plagiado da matriz de São Miguel ,ficou um luxo. Alguém , meio desastrado ,deixou cair sobre o mesmo uma pilha de lanterna . Abriram-se algumas rachaduras e eu fiquei "P" da vida .
Dona Hilda,com sua diplomacia,resolveu a questão.
-Não fiques zangado.Ficou até bonito ! Estas rachaduras dão o aspecto de ondas no lago, não achas ?
E assim,ano após ano,o presépio fora montado na sala de nossa casa.
O tempo correu,o menino esquivou-se e o adulto não tinha lá muita paciência para estas coisas.No entanto,mal dezembro começava a dar o ar de sua graça e a "apurrinhação" começava.
-Vê lá se vai dando andamento ao presépio,dizia minha mãe.Não deixes pra última hora,concluía meu pai.
-É verdade !...Já reservei um canto da sala especialmente pra ele.
Mexa-se ! Determinava dona Hilda.
E o mártir aqui,não tinha escapatória.No final das contas eu até acabava gostando de reviver aquele clima de tantos anos.
Inevitavelmente,as peças começaram a sofrer a ação do tempo.Algumas ranhuras,mutilações (a mula perdera uma das orelhas),uma ovelha quebrou-se e ,numa queda,acidentalmente "Baltazar",um dos reis magos teve a cabeça decepada.
Uma catarata violentíssima acometera-se das vistas de meu pai.Este,antes da cirurgia que o "remoçou para a vida" ,segundo suas palavras,no intento de mostrar-se prestativo,apanhou um punhado de "durepox " e reconstituiu (?) o rei mutilado.
Seria cômico,caso não fosse trágico,mas o neblinado das cataratas fizeram com que a cabeça do rei fosse colada no sentido oposto.
Assim,aquele olhar respeitoso do bibelô,antes dirigido ao invólucro com ouro que levava como presente,apreciava agora tão somente a sua propria região glútea.
Papai, no melhor estilo "versátil da melhor idade",vangloriava-se:
-Tás vendo ! Resolvi o problema do "reizinho".
Ainda bem que hoje existem "estas colas modernas".
Foi o riso mais sufocado em toda a minha vida.Concordei para agradá-lo e fui saindo à francesa.
Com uma serrinha de cortar cano,decepei novamente o "Balta" e com a "cola moderna" coloquei-lhe a cabeça no lugar.
O pescoço sofreu uma ligeira diminuição,mas o olhar dirigia-se a partir daí para o ouro a ser presenteado.
Para encerrar o assunto,desde então,"Belchior",o do incenso,sumiu,escafedeu-se.
Presume-se ter fugido horrorizado diante da atrocidade de duas cirurgias, sem anestesia ,sofridas pelo companheiro "Baltazar".
Mais alguns dias ,e agora em nossa casa,o presépio às vésperas de seu cinqüentenário ocupará um lugarzinho na sala.
A mula sem orelha ,a ausência de algumas ovelhas,um anjo com ligeiras escoriações e ,eles: Baltazar e Gaspar preocupados ainda com o sumiço de Belchior, o fujão.
Joel Gomes Teixeira
Texto reeditado.
Preservados os comentários ao texto anterior:
Comentários
19/12/2015 20:23 - Marcia Portella
Além de maravilhoso fotografo, é ótimo e saudoso contador de causos ...Fim de ano de paz e luz...
20/12/2014 00:37 - Giustina
Por isso que eu gosto do face! Por ele descobri essa maravilha de história, repleta de sentimentalismo, de lembranças boas e com uma dose exata de humor. Adorei! Beijos.
19/12/2011 08:54 - Carlinhos Colé
Caro Joel, você com esta mestria tão sua, conseguiu reunir poesia, ternura e comicidade no mesmo conto. Excelente, meu amigo!
18/12/2011 17:39 - adelina gomes
Que delicia de leitura! Seu conto teve o poder de me emocionar e trazer tantas recordações de minha infância vivida no interior do Paraná! Abraços sinceros da amiga Adelina
17/12/2011 23:32 - Giustina
Mas que belezura de história, Joel! Lembrou-me o Pe.Fabio de Melo que, correndo para mostrar o menino Jesus a um vizinho, derrubou-o no chão, juntou e mostrou ao vizinho que disse: mas cadê a cabeça?
17/12/2011 00:10 - Chico Chicão
Meu caro Joel amigo do meu Paranä querido.Esta foi uma releitura gostosa e surpreendente.Onde anda o Belchior? Será que ele ficou com medo da *mula-sem-cabeca*,ops! mula sem orelha.Meu caro,que bonito o texto e a representacão histórica:52 anos! Meio século de lembrancas!Como diz P.da Viola*O mundo não é só isso que se vê.*Escreva mais delícias.Obrigado.Fique na paz!
16/12/2011 01:22 - tania orsi vargas
Tão bom encontrar você por aqui neste horário em que já ia tentar dormir. Sim, nessas pequenas coisas é que realmente a vida acontece em profundidade. Vi um filme da minha infância lendo a tua história e fiquei sabendo do quanto você é uma pessoa determinada e generosa. Ah, eu achei muita graça do detalhe do compadre que comia a alface e quase se engasgou. Deu pra visualizar a cena. Pessoas como você têm uma função social muito importante que é a de levar beleza para o mundo e ensinar as pessoas a sonhar e valorizar coisas cujo valor é de outra ordem que não a do consumismo e imdediatismo materialista a que estamos submetidos por todo lado. Grande abraço e te desejo um final de ano muito feliz com a tua família. Eu já fiz a minha árvore, não é muito grande, mas cumpre a tradição e me deixa feliz.
Da série:Memórias da minha rua
Pequenos contos de natal (dezembro 2008)
À cada vez que eu cruzava em frente àquela loja,aflorava-me um velho sonho de consumo.Tão somente sonho,uma vez que o "produto monetário",quando aparecia arraigava-se aos bolsos de meu pai e dali não saía com muita facilidade.
Tinha eu entre meus 8 à 9 anos de idade ,o desejo de montar um presépio nos moldes daquele que montava-se todos os fins de ano na casa de dona Avelina, nossa vizinha.
Fazia-nos companhia no jantar daquela noite,um compadre de meu pai.Aproveitei-me da ocasião e cantei a pedra:
-Quero comprar um presépio que vi na vitrine da loja tal,...Blá,blá,blá...Blá,blá,blá...
As respostas vieram-me feito um furacão:
-Endoidô,menino ?...Isso custa caro ! disse-me mamãe.
-Ele pensa que dinheiro "dá em pencas", enfatizou papai .
-Essa piazada de "hoje em dia" quer tudo o que vêem!... Complementou o medioso do compadre, quase engasgando-se com uma folha de alface(Que eu havia plantado, diga-se de passagem).
Calado externamente,(proferindo alguns impropérios em pensamentos) retirei-me da mesa e fui para o meu quarto.Como nunca fui de entregar o jogo no primeiro tempo comecei a arquitetar um plano e já na manhã seguinte estava eu de casa em casa , vendendo ameixas pela vizinhança.
Em pouco mais de duas semanas havia conseguido dinheiro suficiente e mais algum excedente para uns consumismos extras.
Quase gaguejando, tal era a emoção ,me dirigi ao balconista da dita loja :
Quanto custa aquele presépio ?
- Trinta e nove mil cruzeiros . Respondeu-me.
Vou levá-lo .
Com uma certa desconfiança olhou-me , enquanto eu metia a mão no bolso retirando um calhamaço de notas esparramando-as sobre o balcão de vidro .
Sob o olhar atento de dona Tereza ,a dona da loja ,o balconista deu uma cusparada entre os dedos e começou a contar aquele "rolo" de notas ,que ultrapassava o valor do objeto solicitado.
(Com o excedente adquiri alguns agradinhos para o pessoal de casa)
Retornei empurrando a bicicleta com todo o cuidado para não correr o risco de derrubar o precioso invólucro.
Feliz pelo caminho ,sentia-me um bem sucedido empresário do ramo de "horti-fruti".No meu caso, tão somente "fruti" já que hortaliças eu as plantava apenas para consumo próprio (e de alguns compadres "mediosos" de meus pais).
Presépio montado, obedecendo aos exageros de dona Hilda, minha mãe.
(montanhas, pontes, patos....folhagens, ninhos...Uma parafernália ! )
Ficou bonito ! Fez sucesso pela vizinhança.
À cada novo ano ,inovações eram introduzidas. O lago de espelho , plagiado da matriz de São Miguel ,ficou um luxo. Alguém , meio desastrado ,deixou cair sobre o mesmo uma pilha de lanterna . Abriram-se algumas rachaduras e eu fiquei "P" da vida .
Dona Hilda,com sua diplomacia,resolveu a questão.
-Não fiques zangado.Ficou até bonito ! Estas rachaduras dão o aspecto de ondas no lago, não achas ?
E assim,ano após ano,o presépio fora montado na sala de nossa casa.
O tempo correu,o menino esquivou-se e o adulto não tinha lá muita paciência para estas coisas.No entanto,mal dezembro começava a dar o ar de sua graça e a "apurrinhação" começava.
-Vê lá se vai dando andamento ao presépio,dizia minha mãe.Não deixes pra última hora,concluía meu pai.
-É verdade !...Já reservei um canto da sala especialmente pra ele.
Mexa-se ! Determinava dona Hilda.
E o mártir aqui,não tinha escapatória.No final das contas eu até acabava gostando de reviver aquele clima de tantos anos.
Inevitavelmente,as peças começaram a sofrer a ação do tempo.Algumas ranhuras,mutilações (a mula perdera uma das orelhas),uma ovelha quebrou-se e ,numa queda,acidentalmente "Baltazar",um dos reis magos teve a cabeça decepada.
Uma catarata violentíssima acometera-se das vistas de meu pai.Este,antes da cirurgia que o "remoçou para a vida" ,segundo suas palavras,no intento de mostrar-se prestativo,apanhou um punhado de "durepox " e reconstituiu (?) o rei mutilado.
Seria cômico,caso não fosse trágico,mas o neblinado das cataratas fizeram com que a cabeça do rei fosse colada no sentido oposto.
Assim,aquele olhar respeitoso do bibelô,antes dirigido ao invólucro com ouro que levava como presente,apreciava agora tão somente a sua propria região glútea.
Papai, no melhor estilo "versátil da melhor idade",vangloriava-se:
-Tás vendo ! Resolvi o problema do "reizinho".
Ainda bem que hoje existem "estas colas modernas".
Foi o riso mais sufocado em toda a minha vida.Concordei para agradá-lo e fui saindo à francesa.
Com uma serrinha de cortar cano,decepei novamente o "Balta" e com a "cola moderna" coloquei-lhe a cabeça no lugar.
O pescoço sofreu uma ligeira diminuição,mas o olhar dirigia-se a partir daí para o ouro a ser presenteado.
Para encerrar o assunto,desde então,"Belchior",o do incenso,sumiu,escafedeu-se.
Presume-se ter fugido horrorizado diante da atrocidade de duas cirurgias, sem anestesia ,sofridas pelo companheiro "Baltazar".
Mais alguns dias ,e agora em nossa casa,o presépio às vésperas de seu cinqüentenário ocupará um lugarzinho na sala.
A mula sem orelha ,a ausência de algumas ovelhas,um anjo com ligeiras escoriações e ,eles: Baltazar e Gaspar preocupados ainda com o sumiço de Belchior, o fujão.
Joel Gomes Teixeira
Texto reeditado.
Preservados os comentários ao texto anterior:
Comentários
19/12/2015 20:23 - Marcia Portella
Além de maravilhoso fotografo, é ótimo e saudoso contador de causos ...Fim de ano de paz e luz...
20/12/2014 00:37 - Giustina
Por isso que eu gosto do face! Por ele descobri essa maravilha de história, repleta de sentimentalismo, de lembranças boas e com uma dose exata de humor. Adorei! Beijos.
19/12/2011 08:54 - Carlinhos Colé
Caro Joel, você com esta mestria tão sua, conseguiu reunir poesia, ternura e comicidade no mesmo conto. Excelente, meu amigo!
18/12/2011 17:39 - adelina gomes
Que delicia de leitura! Seu conto teve o poder de me emocionar e trazer tantas recordações de minha infância vivida no interior do Paraná! Abraços sinceros da amiga Adelina
17/12/2011 23:32 - Giustina
Mas que belezura de história, Joel! Lembrou-me o Pe.Fabio de Melo que, correndo para mostrar o menino Jesus a um vizinho, derrubou-o no chão, juntou e mostrou ao vizinho que disse: mas cadê a cabeça?
17/12/2011 00:10 - Chico Chicão
Meu caro Joel amigo do meu Paranä querido.Esta foi uma releitura gostosa e surpreendente.Onde anda o Belchior? Será que ele ficou com medo da *mula-sem-cabeca*,ops! mula sem orelha.Meu caro,que bonito o texto e a representacão histórica:52 anos! Meio século de lembrancas!Como diz P.da Viola*O mundo não é só isso que se vê.*Escreva mais delícias.Obrigado.Fique na paz!
16/12/2011 01:22 - tania orsi vargas
Tão bom encontrar você por aqui neste horário em que já ia tentar dormir. Sim, nessas pequenas coisas é que realmente a vida acontece em profundidade. Vi um filme da minha infância lendo a tua história e fiquei sabendo do quanto você é uma pessoa determinada e generosa. Ah, eu achei muita graça do detalhe do compadre que comia a alface e quase se engasgou. Deu pra visualizar a cena. Pessoas como você têm uma função social muito importante que é a de levar beleza para o mundo e ensinar as pessoas a sonhar e valorizar coisas cujo valor é de outra ordem que não a do consumismo e imdediatismo materialista a que estamos submetidos por todo lado. Grande abraço e te desejo um final de ano muito feliz com a tua família. Eu já fiz a minha árvore, não é muito grande, mas cumpre a tradição e me deixa feliz.