As dores, os sabores e os amores

O Junco possui uma beleza estonteante, forte e verdadeira. Consegue ser singular e plural simultaneamente. É de um sentimentalismo sem igual, embora sem ser piegas. Viver no Junco é, deveras, emocionante. Uma vez, rabiscando as minhas introspecções, escrevi: o Junco está encravado em meu coração como um punhal louco do tempo.

Só mesmo quem um dia teve que sair da sua terra natal e se viu obrigado a romper as barreiras e cortar as raízes que o prendiam a esta terra sente estas dores e estes sabores.

Romper barreiras. Cortar raízes. Será que os filhos desta terra conseguem entender o que é isso?

Há personagens que fizeram parte de toda a minha infância e povoam o meu imaginário até hoje. Alguns estavam adormecidos e despertaram em minhas lembranças quando recebi uma carta de um amigo que mora no sul de Minas Gerais. Quanta saudade, rapaz, de Elza de Bidô com um porrete na mão e gritando da janela, ameaçando quem passava pela ladeira que hoje leva o nome de seu pai, o velho Bidô, mestre ferreiro que passava parte do tempo abanando o fogo com o velho fole e comendo pão antes de levar o ferro para a forja da bigorna; Elvira, que loucura! Morreu louca, sem conhecer um hipermercado, a versão agigantada da barraca de doces de seu Mané, armada às segundas-feiras, dia de feira livre na praça do Mercado.

Qual ingrato haverá de se esquecer do velho e bom Zé Grosso animando as noites junquenses no seu Oca Toca; do contador de anedotas João do Bolero com o seu afinado violão; dos causos do delegado João Vieira; do artista Zeca de Julião; de Sátiro Batista com as suas tiradas filosóficas e dos doces de Tiago Preto e das suas bolachas de goma? Meu Deus, quanta saudade! Os caminhões de Devaco e Artur Lopes, dois condutores de romeiros em visita a Nossa Senhora das Candeias, na cidade de Candeias, e que hoje conduzem anjinhos no Céu, bem longe, infinitamente longe, da velha praça empoeirada, animada somente em dias de festa da padroeira e nas paradas de sete de setembro.

Quem foi obrigado a sair de sua terra em busca de estudos, de trabalho, de progresso em outras cidades sabe o que sinto. Só quem teve que morar em quarto de pensão, de pensionato sabe o tamanho de uma saudade. Saudades de tudo e de todos. Do cheiro da terra, dos dias de chuvas, das trovoadas e das secas. Da comida da mãe, dos sermões do pai e do carinho dos dois. Dos amigos, dos bate-papos nas calçadas em fins de tarde, das madrugadas na calçada da Igreja tocando violão, dos banhos no tanque velho e no açude, das pescarias, das pegadas de passarinho com alçapão (sopã, como chamávamos), das arapucas para pegar codornas, das zabumbas para apanhar preás e coelhos, dos piqueniques na roças do meu pai e dos meus tios (cada domingo era em uma), das férias na capital e das lotações para o Conde, Subaúma e Caldas do Jorro. Dos rosários de ouricuri, das torradas de castanhas de caju. Dos umbus, cambuís e bêbadas. Do catecismo e da primeira comunhão. Dos amigos de sempre. Os velhos companheiros de tabuadas com Maria de Venância e Cabo Antônio, da escola e das brincadeiras todas, sempre muito divertidas. Das frustrações dos que não podiam continuar os estudos - sei que muitos ainda hoje sofrem estas dores - das corridas nos grotões do Junco (onde hoje há um bairro bem estruturado) e das confidências, das primeiras namoradas, dos sabores dos amores e das emoções do primeiro beijo.

Envaidece-me tomar conhecimento da sagacidade de muitos junquenses em terras alhures, na busca constante e crescente por conhecimentos. Em que pese a forte corrente migratória, ainda há muitos obstinados, sofredores renitentes e penitentes do pecado de não ousarem caminhar além da Ladeira Grande, ponto de partida dos retirantes, mas que, ao mesmo tempo, ficam felizes ao saber de alguém que saiu daqui, foi para terras estranhas, lutou, sofreu calado a sua dor e ao final venceu. Este já pode se considerar vencedor, embora em seu íntimo não se sinta assim, pois a vida é feita da eterna busca, a infindável procura da realização.