NO BILHETE: VEJA-O COM BONS OLHOS
Papai embora fosse continuo, trabalhava de terno, era aliviado somente da gravata.
O cargo de continuo, no caso dele, era uma deferência, pelo desempenho exemplar como servente, cargo também conhecido atualmente como auxiliar de serviços gerais. Assim ele vivia sentenciando-me que um dia iria mandar reformar um terno, para que eu o usasse, e assim o fez, mas eu safei-me pela falta de sapato social. Seguidamente ele mandava que eu experimentasse um dos sapatos dele. Então chegou o dia que a diferença era imperceptível, pois eu estava calçando 38 e o sapato era 39.
Levado até o seu Diogo, o sapato foi recuperado e pintado.
Não houve escapatória, eu estava pronto para nos sábados ir ao colégio, vestido de continuo, pois assim eu pensava, que papai desejasse que fosse meu futuro.
Dei-me mal, na recuperação, a sola nova, deixou uma tachinha apontada para o meu calcanhar e a cada passo eu claudicava. Outra coisa que me incomodou, foram os bolsos laterais, sempre prontos para receber pequenos objetos, nada recomendável, pois davam-me a impressão que eram malas de garupa. Diante da minha inconformidade, o alfaiate prontificou-se para costurá-los.
Livrei-me de ser continuo e aprendi que uma tachinha e tão perversa quanto uma pedrinha dentro do sapato.
Tive vários ternos durante a minha vida profissional, mas o de uso obrigatório era o também conhecido como fardamento quinto, que acompanhava-se das guarnições, quepe, gravata vertical e sapato social.
Pouco depois da metade de minha carreira como militar, deixei de usar coturnos e então usava o tal quinto e suas variâncias, com manga curta, mas raramente, raríssimas vezes usei a tal boina de feltro, coisa que, neste mister eu destoava do General Montgomery.
Durante quase 30 anos, os bolsos não me incomodaram, pois costurava-os e assim não podiam servir de malas de garupa, nem tão pouco fui fustigado por qualquer objeto interposto entre minhas plantas dos pés e as solas dos sapatos que usei.
Em 2003, um colega ao cumprimentar-me, tentou por um bilhete num dos bolsos do meu casaco, mas não conseguiu, pois estavam costurados, mas mesmo assim, não perdeu a viagem, colocou-o sob a lapela, recomendando-me:
- Veja com bons olhos, este meu camarada!
Respondi que veria com justiça!
Passados alguns dias, saiu o resultado e o camarada, que fora recomendado, não conseguiu subir no ônibus, na frente dos que aguardavam fazia mais tempo.
Não deu outra, o colega autor do bilhete interpelou-me, claro que a interpelação, na maior cordialidade, mas sem deixar de indagar o porquê dos 2 pontos que atribui ao afilhado dele, quando eu poderia ter dado 6 pontos.
- Dei 2 pontos, não só para ele, mas para todos os aviões que tentavam levantar voo em pistas clandestinas. - Respondi eu.
Se a esperteza de meu colega, transformou a lapela num bolso improvisado, a lembrança da tachinha fez-me espetar a plantas dos pés dos espertos.
Na memória guardo que não há segmentos genuinamente puros e isentos de malandragem, mas também guardo que não é difícil de enfrentar os ditos espertos e desbancá-los. Basta querer.
Do livro: Abrindo gavetas da Memoria - 2017 - 2018
Sexta Crônica Crônica