Noite alta, soprava uma brisa morna enquanto eu caminhava em direção à estação do metrô da rua Uruguaiana. Vinha da Rio Branco, onde bebi uns desses chopes que festejam a despedida do ano. Festejar não é mais uma palavra politicamente correta no Rio de Janeiro. Pela calçada da av. Presidente Vargas, fui cruzando com uma infinidade de moradores de rua deitados sob as marquises. De repente, alguns carros enconstaram junto ao meio fio, grupos de pessoas desembarcaram e começaram a servir pratos de comida para os indigentes. Pratos de plástico, com uma pequena porção de algum alimento que não consegui identificar. Os desabrigados se movimentaram eufóricos, comemorando a chegada da caridade. E aquela pequena fagulha de alegria, que despertou os semivivos do relento, me fez pensar que o coração da gente de rua fica no estômago.
 
Culpa, foi o que senti diante daquele cenário triste. Vergonha, desolação, impotência, assim batia o meu coração delator. Convivemos todos os dias com colônias de miseráveis e o que fazemos é lamentar ou fornecer algum consolo filantrópico que mantém a sobrevivência, mas não inclui entre nós os alijados da vida. O capitalismo não nos amputa completamente a sensibilidade, mas nos implanta o conformismo. Estamos conectados nesta Rede irreal, onde fazemos discursos, tiramos fotos, nos mostramos humanos, rebeldes, inteligentes e politicamente engajados. No entanto, lá fora, a realidade não se interessa por nada disso, não se conecta por cabos de fibra ótica, mas pela barriga que ronca, pela sede da boca seca, pelo desamparo de tudo. Para a realidade de um país desigual, discursos são inúteis, sequer são afrontas. O Brasil voltou ao mapa da fome, repetimos todos os dias, citamos os índices que comprovam a denúncia. Não pensamos nas pessoas morrendo pela tortura da indiferença quando alardeamos a tragédia, pensamos somente em desafiar o governo vigente com nossa microscópica voz replicada na Internet. A desumanidade é pragmática e o humanismo que se restringe às palavras é uma das faces da nossa crueldade.
 
Um país entrópico. De um lado os que conseguem existir com luxo ou alguma dignidade, na outra ponta os que inexistem materializados em andrajos estendidos sob os nossos pés. Qualquer energia que possa promover uma reação à disparidade é dissipada antes que se consolide. O nosso sistema é comandado por carniceiros, são como o vírus se reproduzindo num moribundo, que prossegue sua tomada irracional mesmo sabendo que a morte do corpo também irá matá-lo. Não lhe interessa a consequência, a natureza o adestrou para prevalecer pelo aniquilamento, nunca pela partilha.
 
Que vexame é ouvir um escritor reconhecido no mundo afirmar que há mais gente na rua em um quarteirão de São Paulo do que em toda Cuba. Sim, em Cuba há mais dignidade do que num quarteirão do Brasil. Cuba, um país comunista, sabotado desde sempre pelos EUA. Respeitam-se. Orgulham-se. Reagiram contra a doutrina que pretendia transformá-los em mais um cadáver alimentando a sanha insaciável dos carniceiros do capital.
 
Não, não há humor neste texto. Não há o glamour das fotos e das legendas de uma viagem bonita. Não há propaganda de livros. Não há análise política. Não há reação, são só palavras. Somos carpideiras chorando num velório, isoladas dentro da capela de um cemitério imenso, diante do caixão de um defunto que nunca conhecemos. No entanto, se chegarmos um pouco mais perto, veremos o nosso próprio rosto, alguém que faleceu com um estranho e insuportável sorriso de esperança inerte.
 
Alexandre Coslei
Enviado por Alexandre Coslei em 17/12/2017
Reeditado em 01/01/2018
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