Na rodô de Brasília

Fala-se muito mal do Terminal Guadalupe, em Curitiba, dos tipos perigosos que andam por ali, eu mesmo já tive uma experiência um tanto inusitada no local, quando uma mendiga, drogada ou louca tentou me agarrar e dar um beijo de língua. Fala-se muito mal do Terminal, mas só se fala tão mal assim porque as pessoas, em geral, não fazem ideia do que seja a Rodoviária do Plano Piloto, na capital do país.

Dizem que é obra do Niemeyer, e não duvido, mas aposto que ele preferia que não fosse, de certo não tinha nenhum orgulho em saber que contribuiu para aquele caos, uma humilhação do proletariado. Sim, porque tem proletário em Brasília, não é só o pessoal do poder, tem muito proletário que no final do dia vai até a Rodoviária do Plano Piloto, onde é apertado e espremido por outros proletários, até que entra em um ônibus e passa a ser apertado lá dentro. Depois de muito tempo, esse ônibus consegue um espacinho para sair da rodoviária, é mais fácil sair um avião de Congonhas que um ônibus em Brasília.

A rodoviária até é munida de escadas-rolantes, mas o governo do DF sabe que é grande desperdício de energia elétrica deixar que todas elas funcionem ao mesmo tempo, por isso deixa ligada apenas a que desce, obrigando o cidadão a subir os degraus um a um, numa bela campanha contra o sedentarismo.

Um dia eu estava subindo uma dessas escadas logo atrás de um tipo suspeito. Tinha uma pose de mal encarado e virava o rosto para me observar. Ao fim do primeiro lance de escadas, mudei a direção. O sujeito, percebendo, mudou a sua também. Não havia mais dúvidas, eu estava sendo seguido. Havia ali por perto pessoas assistindo a uma televisão e eu resolvi me juntar a elas. O tipo interrompeu o passo. Pouco a pouco, foi se aproximando de mim. Antes que acontecesse alguma coisa, voltei a caminhar sem olhar para trás. Encontrei então um policial e parei ao lado dele. Funcionou, o homem passou ao largo. Mas eu ainda toparia com esse mesmo sujeito mais tarde e teria que fugir outra vez. O que ele queria comigo, eu não sei. Talvez um beijo de língua. Fato é que situações assim não são raras na tal rodoviária.

Volta e meia você escuta uma gritaria, estoura uma briga, uma cena de violência qualquer. Existe nessa rodoviária dois restaurantes, e com frequência você está comendo e aparecem pessoas pedindo que você pague uma refeição para elas. Normalmente são apenas crianças, mas o proprietário do restaurante não quer saber, enxota dali mesmo, troca insultos, faz ameaças. Se for adulto, por vezes sai no braço.

Há uma infinidade de ambulantes por lá, que vendem todo tipo de produto, de goiabas a DVDs, de adesivos para unha a chip de celular, de calcinhas a jogos de Play 2. Um dia topei com um vendedor de agulhas (27 agulhas por um real). E também com aquele vendedor de poemas, sobre quem já escrevi. O diabo é que de vez em quando a polícia acha que deve dar uma batida por lá, só para constar, manter as aparências mesmo, e logo começa uma correria danada. Tem rapa na rodoviária do Plano Piloto.

Às vezes surge um pregador. Um dia apareceu uma pregadora menina, devia ter cinco, seis anos no máximo. Os pais dela, naturalmente, estavam ali por perto gerenciando tudo. E no meio da pregação dela apareceu um outro pregador, esse já velho, pregando contra as coisas que a menina pregava, dizendo que eles cobravam por aquilo que devia ser de graça. As duas pregações ocorreram simultâneas durante certo tempo, até que o velho foi empurrado para longe.

Quem fica parando muito tempo no mesmo lugar, quem dá bobeira, pode saber: será abordado por alguém, pedindo alguma coisa ou contando uma história qualquer. E, ao contrário do Terminal Guadalupe, não há igreja por perto onde se esconder.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 17/12/2017
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