NAQUELES DIAS DE CHUVAS
NAQUELES DIAS DE CHUVAS
Eram dias frios. De chuvas frias. De olhos frios. Chuva na vidraça. O andar escandalosamente lerdo da traça. E a parede visitada não estava nem aí.
O filho morto celebrava a morte da mãe.
Um anjo velho de asas desgastadas. Quase implumes. Inspirava-se no voo das nuvens cinzas. E frias.
Aqueles lábios eram sombras de beijos desumedecidos. Calados de cantos e rezas. Um bafo de morte sussurrava sua rotina fria. Dia após dia.
Havia sangue fora das veias. Murmurando ladainhas intumecidas de tédio. Cada vez mais tédio. Que corria desesperos pelos músculos. Pelos ossos.
Dia ordinário entre muitos outros. Em que nada de extraordinário acontecia. E a chuva, caía.
Dedos longos estendiam gestos curtos. E suavam suicídios fracassados. A imortalidade lastimava-se em abortos espontâneos.
O filho morto chorava o choro da mãe morta. E era chuva. E era fria.
Pessoas cúmplices emudeciam-se frente ao engasgo das palavras. Frias. E mortas. Passantes ao largo. Não viam. Voavam.
Um nó, cego de raiva, retorcia voltas. E revoltas. Mãe morta que não via o filho morto. Privação de tudo. Um tudo sem toque. Um toque de nada. Que afoga afagos jamais intercambiados.
Na terra-morta. A terra-mãe evocando o filho que correu celerado, mar afora. A terra esfriava-se. Inocentava o filho-mar. Frio como a chuva. Que caía. Apagando número a número o calendário das lamentações.
Tudo muito longe para os pés sem chão. Tudo muito perto para uma pétala e seu perfume.
E a chuva? Caía. Finíssima. E fria.
Mírian Cerqueira Leite