ALMOÇANDO MEIO DIA EM PONTO
Milico tem estas manias, que lembram-me de papai e mamãe. Hora para tudo, tudo certinho, para não perder o ônibus, mão chegar atrasado na escola. Fazer o tema, para não perder o ano.
O cardápio pronto de véspera, não do dia, mas de mês após mês, sempre o mesmo, a tal de rotina, ditada pela escassez de dinheiro e pela falta de geladeira.
Hoje, agradeci aos deuses e santos pelo alimento, pedi pelos que necessitam e deliciei-me numa marmita, posta sobre a bancada da serra circular. Entre os 40 dentes podia enxergar as couves crespas, que dão-me folhas o ano todo. Um misto de tristeza de saudades, felicidade e nostalgia, fizeram-me perceber que na minha marmita havia feijão guandu e ora-pró-nóbis, ricos em proteína, açafrão, pimenta, alface, couve, manjericão e tomatinhos cereja, vindos da horta. Horta tão descuidada, que mesmo assim dá-nos muitas coisas.
Quase descuidei-me do almoço, perdido em meus pensamentos. Hoje tanto faz almoçar em mesa rebuscada, na bancada, com a marmita apoiada sobre a mochila do quartel, pois o importante é almoçar quando muitos não podem, por doenças que enfrentam ou por falta de alimento.
Dá memória veio-me os almoços sentado num dos bancos da praça Jaime Telles, aliás, nem eram almoços, talvez lanches, um quarto kg de pão d'água, recheado por uma sardinha e um refrigerante de 230 ml e um pequeno agradecimento aos céus. Tudo sob a vigilância do zelador da praça, que sempre aguardava que eu pusesse as sobras na cesta de lixo. Esta rotina acompanhou-me por quatro anos, nos dias que havia aulas em dois turnos. Não tínhamos estas facilidades de escola em turno integral, merenda servida na escola, muito menos o almoço.
Ainda quero voltar à praça e repetir o lanche, depois de transcorridos, quase 50 anos, sabendo que o zelador lá não esteja mais, mesmo desconfiando que alguém poderá querer afanar-me o meu lanche e algo mais, ou até, quem sabe, porem-me em camisa de força.
Enfim, penso que será melhor, um almoço de domingo, um carreteiro de charque, daqueles, do tempo que o charque salvava a carne, por não haver geladeira.
Obrigado aos céus, pelo alimento e pelas tantas mesas, bancos e bancadas.
Do livro: Abrindo gavetas da Memoria - 2017 - 2018
Quarta Crônica