DA IMPAGÁVEL FATURA... AO CONJUNTO VAZIO

Final dum dia normal aos sortudos que ainda trabalham, cada um a defender a vida como pode e lá estávamos nós, num conjunto único e vazio, embora bem representativo das tantas diversidades e dificuldades da vida atual, a defender a sobrevivência carnal (e até emocional!) na fila dum caixa de supermercado.

A princípio, alguém poderia pensar “algo jurássico para um mundo informatizado que vive de múltiplos Apps”.

É verdade. Mas...aff!- os Apps acabam com todas as minhas memórias virtuais! Gosto e faço uso de memórias reais! E as escrevo!

Posto, estivesse eu no silêncio “fashion” e impessoal dum App de última geração, não poderia eu lhes narrar a história VISCERAL que vivi e aprendi ali.

Assim, conto que os personagens da minha crônica urbana éramos TRÊS:

Ela,o caixa uniformizado, biologicamente ainda menina, mulata, estatura mediana, sobrepeso, fácies nitidamente desanimada.

Ele:a minha frente, biologicamente Homem, adulto jovem, negro, alto, magérrimo, fáceis algo abatida, a vestir um uniforme duma empresa do mercado de autos.

Eu: biologicamente ainda mulher, ainda meia idade, ainda branca, ainda pequena, ainda nutrida, fáceis já nocauteada pelo dia mas ainda de olhos vivos e coração pulsante, a vestir uma das “fantasias uniformes” das tantas que uso pelas minhas horas...

Ali, naquele nosso conjunto de três, vagamente lembrei das aulas de matemática, da "teoria dos conjuntos"-lembram?- caramba, aquilo me intrigava, e eu perguntava para o professor como poderia existir um conjunto sem nada dentro. "Mas eu não consigo entender isso, como assim, um conjunto vazio, sem coisas, professor!?"

Ele sorria e nunca me deu a resposta.

Parecia que aguardava o tempo para o meu aprendizado "ao vivo".

Então me explico: Poderia ser o nosso conjunto humanístico de hoje, super didático da tal teoria, pleno mas vazio, e ali, no nosso vazio de três, havia um principal elemento de intersecção, o elemento comum mais importante: éramos todos humanos...embora algo iguais e algo diferentes dentre a diversidade do todo do nosso conjunto vazio.

Digo que minha compra era uma encomenda simples do dia-um LUXO PARA OS DIAS DE HOJE!- que não era para mim: pães fresquinhos para o café da tarde, bananas e algum item de primeira necessidade daquela casa.

Enquanto eu aguardava pela minha vez , sem querer, vi a cifra da fatura do cartão dele espelhada na tela de vídeo do caixa , a desanimar mais ainda a sua (e a nossa!) expressão:

” São só R$200,00” senhor, o valor registrado da sua fatura mensal do cartão da nossa loja.

Ele nitidamente pensativo decidiu em voz alta, meio sem jeito :

”vou pagar só a metade”.

"Sim, estamos pelas metades!"-deduzi ali.

Prontamente, o caixa o advertiu nitidamente desolada: ”mas senhor , vai correr juro alto nos seus cem reais restantes...” .

E ele contemporizou a sorrir: “ até lá dou um jeito de fazer mais um bico...”

Percebi que ela engoliu seco como eu, num mesmo sentimento que julgo ser indigno de se sentir por um outro ser humano.

Éramos um conjunto vazio de tudo!Todos dignos de dó fundamentado!

Ele se foi cabisbaixo e pensativo, não menos desanimado do que nós duas...

Na sequência da fila o visor da calculadora registrava minha compra pontual : Pães, “R$10, 00 reais”; bananas R$15,00 reais...e se fechou na cifra de R$ 50,00.

Lembrei dos R$ 200,00 reais da fatura de um mês dele...paga pela metade. E eu me senti quase culpada, mas ato contínuo me redimi:

Ora, mas se estamos todos pela metade!

Absolutamente todos! Cada um do seu jeito proporcional!

No vazio das minhas compras eu havia gasto 25% daquela sua fatura de consumo mensal...em pães e bananas."Como ele consegue?"-pensei com meus botões...

Estamos todos pelo aquém da metade da cidadania...sim, estamos.

Então eu lembrei de todos os vazios das corrupções.

Lembrei do conjunto resultante de todos os nossos conjuntos vazios: do tudo e do todo de todos.

Lembrei do quarto repleto de R$51 milhões de reais de propinas...pagos pelo povo...e sem parcelamento! Mas a juros e impostos altíssimos!

Lembrei da reforma da previdência que vai desprivilegiar os “privilegiados”.

Quem vai pagar a fatura? Fatura alta...para se apgar a vida toda.

Lembrei da falta de saneamento báscio,de infraestruturas diversas, de

saúde, de escolas, de segurança, de moradias, de meio ambiente saudável, de hospitais: Fatura impagável aquela que se paga, ainda que silenciosamente, com a morte da própria vida!

E por fim, como sempre lembro, lembrei do meu professor de matemática, que nunca me ensinou o que era um conjunto vazio, muito menos de infinitos elementos sociais tão vilipendiados.

Sai dali numa das lições matemático- financeiras e humanísticas mais viscerais da vida cidadã vítima das corrupções: a de que, DE ALGUMA FORMA, a fatura impagável nos chegou a todos, cidadãos dum diverso conjunto pra lá de vazio, esvaziado pelas mãos ávidas dos que não têm a mínima visão do conjunto.

Um conjunto vazio aonde a divisão social do nada pelo nada já nos é possível na vida, apesar de o ser negada pelas ciências matemáticas.

Essa foi a lição que meu professor deixou para que eu a aprendesse só muito tempo depois.

A que ele jamais acreditaria ser possível ensinar...muito menos se aprender assim, numa fila que nunca anda mas cresce e desanda exponencialmente: a das indignidades humanas fomentadas pelos seus "iguais".

Da fatura impagável: Será que conseguiremos pagar...ao menos só a metade?