INSTANTES NA RODOVIÁRIA

Já passava das nove da noite; a rodoviária se achava com muito pouco movimento naquela hora. Apenas cinco ou seis pessoas sentadas nos bancos. Na administração somente um funcionário, além do atendente no guichê; o único bar em baixo, próximo, praticamente vazio. Eu tinha por hábito, sempre que precisava passar a pé pelo local, parar a esmo um pouco; não sabia bem por que, mas aprazia-me de ver a movimentação dos ônibus, motoristas, trocadores e passageiros, e sempre coincidia naquele horário, de passageiros com destino a São Paulo, se apresentarem para o embarque, o que geralmente atraía amigos e familiares, que se juntavam a fim de se despedir deles. Mas nem essa aglomeração ocorreu, sendo isso mais comum nos finais de semana, e como chovia com alguma intensidade e eu estava sem guarda-chuva naquela noite, esse foi mais um motivo que me fez parar e sentar.

Entre os que se achavam presentes, havia um senhor e uma senhora que aparentemente conversavam com certa tranquilidade. A princípio, pude perceber que os dois articulavam algumas palavras, mas num tom tão baixo e forçado, que se tornava muito difícil a compreensão. A senhora, aparentando meia idade, de chinelos de dedo, com a roupa um pouco rota e suja, e os cabelos desgrenhados e maltratados. Ele, pela fisionomia, parecia ser mais velho, os trajes igualmente rotos e imundos. Imaginei logo que pudessem estar sob o efeito do álcool. Muito comum no dia a dia, pessoas em tal estado de embriagues, transitarem ou permanecerem um bom tempo no local, sempre chamando a atenção dos usuários e passageiros. Como eu, dentre os que se achavam por lá, me encontrava num banco mais próximo a eles, pus-me a observar melhor os seus gestos, trejeitos, os rostos de aparência sofrida e degradante. Em dado momento inesperado, ele que até então se mantinha calmo, elevou a voz num tom bastante desabrido:

__ Por que você tá me chamando de mentiroso? Que é isso, eu que sempre tratei você com respeito, a gente sempre foi amigo, e vem falar que eu sou mentiroso, olha essa?

E continuava a esbravejar e a se queixar, gesticulando nervosamente. Percebi que a senhora, não obstante a sua zanga, não alterou o seu modo de agir e somente balbuciava algumas poucas, palavras, mas, diga-se de passagem, no início, totalmente incompreensíveis. No entanto, pela reação enfurecida do seu companheiro, dava-se para perceber que a mulher, a sua maneira, estava a provocá-lo:

__ E não quero saber de continuar a me chamar de mentiroso, tá ouvindo? Que coisa feia; pode perguntar pra qualquer um que me conhece que eles vão dizer que não sou nada disso. A gente se conhece há tanto tempo, sempre fomos amigos, sempre frequentou a minha casa! __ E antes que a mulher respondesse qualquer coisa, levantou-se ainda mais nervoso e excitado, enquanto proferia aquelas que pareciam ser as suas últimas palavras. __ E não quero mais saber, vá pro inferno! Esse negócio de me chamar de mentiroso, olhe só!

E dirigiu-se, resmungando forte, com alguma dificuldade de locomoção, até o banheiro da rodoviária, onde permaneceu por alguns minutos. A chuva, embora diminuísse um pouco a sua intensidade, insistia em cair com sofreguidão. As mesmas pessoas continuavam no local e talvez, quase tanto quanto eu, pareciam acompanhar e mostrar interesse e curiosidade, quanto ao desfecho daquela cena inesperada noturna . Durante o tempo em que o senhor permanecia no banheiro, ela, a todo o instante, voltava a cabeça para trás, a fim de verificar se ele havia deixado o recinto. Finalmente, para a surpresa de todos, o homem apareceu e encaminhou-se justamente para o mesmo lugar, sentando-se ao seu lado novamente. Após uns breves minutos de calmaria provisória, pôs-se de novo a vociferar:

__ E pare de me chamar de safado e sem vergonha! Olha, eu que sempre te tratei bem, com respeito, conheço você há tanto tempo, e vem a dizer essas coisas ruins de mim! Já saímos tantas vezes juntos, já dançamos até forró juntos, a minha irmã é muito sua amiga entendeu; e você vem a dizer que eu sou safado e sem vergonha! Pode perguntar pra qualquer um que conhece; sou um homem, trabalhador, responsável, honesto. Não quero saber da nada! Tô muito decepcionado!

Foi nesse instante em que, pela primeira vez, entendi que a mulher veio a murmurar, entredentes, a palavra “safado”, dando a entender dessa forma, o gesto de provocação. Além disso, o curioso é que enquanto o homem falava, ela parecia repetir algumas das mesmas palavras que o outro dizia, principalmente quando este passou a se referir a própria irmã. Como podia se falar em discussão a dois, pois se quase que somente ele praticamente abria de fato a boca? Pelo patente nervosismo que manifestava, dava-se a impressão de que, a qualquer momento, fosse partir para algum tipo de agressão física, o que felizmente não ocorreu em nenhum momento do incidente. Impressionante como pessoas envolvidas nessa mesma condição social, subumana, podem a tender a se comportar de maneira até semelhante, seja nos gestos, nas atitudes, na forma de se comunicar, quase sempre utilizando até os mesmos termos.

__ Pare com esse negócio de me chamar de safado e sem vergonha! Não quero saber, quem me conhece bem, sabe que não sou nada disso. Já saímos tantas vezes juntos, já dançamos até forró, a minha irmã é muito sua amiga e você vem aí a dizer que eu sou safado e sem vergonha! Isso não admito!

E assim, admitindo ou não, essa quizila durou por mais algum tempo, até os dois, de súbito, resolverem-se levantar e sair. Como ainda chovia forte, a mulher abriu calmamente a sombrinha que portava em mãos, e os dois saíram caminhando abraçados, em direção à rua, como se nada de mais extraordinário tivesse ocorrido, embora ele murmurasse mais algumas palavras de indignação.

Surpresos com o desfecho desse incidente, todos não aguentaram e começaram a rir, e um rapaz que se achava bem sentado a minha frente, apenas observou: “é desse jeito que o mundo vai andando”.

Igualmente surpreso, limitei-me somente a sorrir, enquanto presenciava de longe, o homem e a mulher ainda abraçados, já ganhando a rua pela noite, ao mesmo tempo em que eu ouvia o barulho da pancada da água da chuva sobre o terminal.

Wagner Andrade
Enviado por Wagner Andrade em 12/12/2017
Código do texto: T6196706
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