Mineirão por Van Gogh
São horas, as avenidas nos arredores do grande palco estão inflamadas de gente. Alguns homens levam bandeiras. Algumas bandeiras são bambus mais pedaços de pano colorido. Com os homens vão os fósforos. Os cigarros moram nos bolsos das calças de cotelê de algodão ou calças “Lee” falsificadas. Os homens carregam radinhos de pilha. Os tamanhos variam, desde unhas de dedo mínimo a bondinhos do Pão de Açúcar. Os homens acompanham procissão, outros chamam isso de entrar na fila pra comprar ingresso.
São horas. O lugar é verde mais branco. Outros homens no lugar verde. São os artistas. Daqui de cima, os olhos encontram placas escritas, de lado, ao derredor. É língua dos homens. As pessoas da procissão se assentam, mas pra ouvir missa nem todo o tempo o padre deixa, Os homens da procissão se assentaram e se silenciaram. Agora é prestar atenção ao palco verde.
Começa a função, depois de um apito. As imagens do lugar verde se mexeram. Os homens parece que acompanham o movimento das imagens. É bem perigoso o deslocamento vertebral, o pescoço... Se virado bruscamente, querendo acompanhar os lépidos artistas, o pescoço parece vazando sangue, as veias que nem se arrebentam. Mas as imagens lá de baixo, no centro das atenções, são de cavalos puro-sangue, têm pernas grossas e veias reforçadas. Não há perigo, não se machucam facilmente.
Tempo passa. Função ainda. Uma hora e meia, falta ainda um pedaço, quinze minutos. Agora, mais de tarde, palitos de fósforo se acendem a toda hora, como se houvesse um aniversário segue-segue. Pra que tanta palma? Pro aniversário ou para os puro-sangue que se defrontam? Ah, foi um que alcançou o objetivo. E o povo gritou junto, ficou irmão, ficou de bem. Quem dera que a irmandade de agora persista até o dia do Juízo Final!
Parece que há vontade de esmagar o outro lado. Ódio explícito. Quando gritam, parece que sai um tubarão dos mais abissais da região do espírito, vontade de ser elefante, pisar na cabeça da formiguinha. Será? Será assim? Sempre existirá o “nosso” e o “ deles”? Mais certo que sim, quem já viu o par sem o ímpar? O de lá sem o de cá? O sujeito sem o predicado?
Depois de tudo, batalha definida, os jornais se queimando. Violentos sem causa. Os jornais de hoje de manhã, jornais de domingo, que custam tanto a se comprar... O “Estado”, o “Diário”... Queimam-se. Estádio sozinho, jornais se queimando, a herança das arquibancadas. E do pessoal da limpeza. Os que pagam o pato.
Domingo que vem tudo estará limpinho de novo, tudo poderá, então, recomeçar. E tubarões ferozes fugirão das gargantas, que nem hoje, quando o povo odiar de novo, contido, feliz, irmanado.
[Mineirão, Belo Horizonte, 1969]