HAMLET

Acordou com o gosto amargo da ressaca miserável na boca. Antes de sua derrocada até a sarjeta, quando ainda bebia socialmente, ele costumava brincar com seus amigos comparando este gosto ao "gosto de pau de mendigo". Todos costumavam rir de sua engenhosidade perversa em tecer estes tipos de comentários que misturavam originalidade com asco. Hoje, sem teto, ele não acha mais nenhuma graça em si e não mais zomba dos alcoólatras e nem dos que sobrevivem nas ruas. E pensando bem ele jamais bebeu socialmente e tão pouco foi admirado - as pessoas riam era de constrangimento.

E disso ele entendia. De constrangimento. Ele sentia o embaraço que se tornara para si e para os que o cercavam nas festas de aniversário dos filhos, nas reuniões de família, nas convenções sociais em geral. Os olhos da esposa transbordavam com este sentimento, porém o que o amargurava era o silêncio. Ninguém falava nada. Ninguém reclamava. Ele era aquele parente indesejável, que era melhor ser ignorado a ser confrontado, tolerado pelo bem dos demais. Ninguém falava nada porque ninguém acreditava que adiantaria. Ele era um caso perdido. E assim, ele se tornou exatamente o que esperavam dele. Se afogou no poço da autopiedade e se livrou de toda esperança, de qualquer sentido na vida. A mulher o abandonou, levou os filhos. A família o renegou completamente. Estava sozinho e perdido e merecia seu destino. Ele trilhava os passos tortuosos de seu pai e apenas a lembrança dos tempos de infância acalentavam seu espírito enquanto seu corpo se acostumava a ser fustigado pelo sol e pela chuva.

Seu pai era do campo e ele crescera do mesmo jeito. Aos nove anos já fumava e bebia, incentivado pelo próprio pai, modelo de homem que ele idolatrava. Ninguém o questionava e mesmo estando errado ninguém o contrariava. Sua mãe o tratava como rei lhe servindo de todas as formas na mais completa submissão. A vida da pobre coitada era para viver em função do marido e assim fora até ela se tornar mãe. Então as consequências dos excessos do marido que ela suportava começaram a serem direcionados ao seu filho. Por mais de uma vez ela se colocou entre o companheiro e o filho e pagou com sangue. O menino que tinha no pai um heroi jamais acreditara que ele fosse capaz de realmente lhe fazer mal e nunca perdoou a mãe por separá-lo dele. Nunca mais vira o pai desde que deixara o campo para vir para a cidade.

Cresceu passando dificuldade, a mãe solteira fazia o que podia para sustentá-los. Ele não ajudava em nada e a culpava. Ela implorou por auxílio com um irmão de seu pai que os acolheu ao procurá-los para dizer que o grande beberrão havia sido encontrado morto no meio do mato, esfaqueado por causa de uma garrafa de pinga. Ao saber do triste fim de seu pai as coisas pioraram, sua mãe agora morava com o tio e se tornara esposa dele se encantando pelo homem que se assemelhava ao antigo marido fisicamente, porém que agia de forma totalmente diferente. Sentia que aquele homem estranho desonrava a memória de seu pai e fugiu muitas vezes de casa. Na última, se casou e jamais voltou a ver a mãe traidora e o tio usurpador.

Agora sozinho por ter esbofeteado a mulher e tentado espancar os filhos como seu pai ele vivia um dia de cada vez para beber e entorpecer os sentidos e recriar em sonhos ébrios seu tempo de criança -a época mais feliz de sua vida. E revivendo o amor que sentia por seu pai, mesmo sabendo que ele jamais o merecera, consciente que sua saúde estava com seus dias contados, decidiu revê-lo uma última vez.

Embora tivesse flertado com a ideia, foi no dia de finados que ele tomou coragem para executar o seu plano. Munido de uma pá de cimento que furtara quando fizera um bico de ajudante de pedreiro ele se infiltrou em meio a massa de familiares saudosos dos seus entes que partiram. Enquanto muitos choravam, acendiam velas, limpavam os túmulos dos falecidos, trocavam as flores dos vasos ele esperou em frente ao túmulo do seu pai e ali lembrou-se de quando testemunhou o coveiro selar seu túmulo. Emocionado conversou com o pai por toda a tarde. Com o movimento enfim diminuindo ele partiu para a ação.

Retirou o cimento de entre os tijolos com o maior cuidado possível para não fazer muito barulho e puxou tijolo a tijolo até chegar no caixão semicorroído. Dentro dele a carcaça de seu pai jazia em paz imperturbada e ele, alucinado pela emoção etílica, entrou dentro do túmulo para conseguir o que queria: o crânio do homem mais poderoso que conhecera, do rei entre todos os outros. Ao pegá-lo nas mãos, estranhou, ele não parecia ser tão pequeno. Aos olhos de menino ele tinha o pai como um gigante invencível e ali encontrara somente um esqueleto sem nada de especial.

De qualquer forma, ciente de que não tinha mais como voltar atrás, escondeu na camisa rota e suja o tesouro e partiu do cemitério. Ao passar pela entrada, leu a mensagem em latim sobre os quatro pilares: "haec itarareentium domus secunda donec tertia" e mesmo sem entender nada sorriu. A satisfação do êxito em cometer tal ato ao mesmo tempo ousado e asqueroso lembrou seus tempos de juventude e de seus comentários. Talvez alguém tenha o admirado em uma dessas frases de efeito nas mesas de bar, com toda certeza, depois daquele dia, todos iriam se lembrar dele.

Para completar e deixar o seu legado ele precisava ser descoberto. Um crime perfeito só vale quando se revela a genialidade (ou loucura) de quem o cometeu. E assim, ele não foi para muito longe e adentrou a Santa Casa de Misericórdia portando entre trapos o crânio de seu pai e conversando com as pessoas apresentando o maior homem que elas conheceriam em suas vidas. O cheiro de morte, urina e bebida emanavam dele como uma peste e a comoção por sua aparência, cheiro e tesouro fora tanta que as pessoas realmente talvez nunca esqueçam o mendigo insano que perturbava a frágil paciência dos pacientes do SUS naquele dia agourento.

A Guarda Municipal foi chamada e o sujeito detido com uma fiança de mil reais. Seu meio-irmão que ao ser contatado respondeu biblicamente repetindo as palavras de Caim para Deus: "Acaso sou guardião do meu irmão?" ao ser indagado se teria o dinheiro para livrá-lo do cárcere deixou claro o seu desprezo. O crânio foi devolvido ao túmulo e este ato de megalomania não surtou o efeito desejado tendo apenas uma nota de rodapé no folhetim mais sensacionalista e ridículo que circula no município.

O homem aguarda seu destino preso, sabendo que aquela talvez seja sua última noite, ele dorme sonhando em rever os braços do pai para fumar um paiero ao seu lado e matar uma garrafa de aguardente. E sente a presença de seu espírito como um fantasma a lhe anunciar o fim.

"Há mais coisas entre o céu e a terra do que desconfia a nossa vã filosofia" - ele concordaria, com certeza, se conhecesse Shakespeare.

E sem ter tido chance de se questionar sobre "ser ou não ser", ele se foi.

José Rodolfo Klimek Depetris Machado
Enviado por José Rodolfo Klimek Depetris Machado em 09/12/2017
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