Assim ou ...nem tanto. 120

José

Sabe que nasceu mas quando se viu era já capaz de guardar o conceito que da visão de si lhe chegou. Não era só corpo nem criança, vontade, riso ou choro. Havia mais de si, indefinido, diferença, voz particular, sentido próprio. Era um como todos mas diferente. E cresceu. Um dia achou que estava pronto e quis tudo. A seguir teve de aprender com muitos dos outros e todos eles passaram a fazer parte de si. Ganhou de uns o jeito, de outros a palavra e viu em si o pai, a mãe, a cidade. A parte que sobrava sem classificação, sem idade, sem consequência era a alma. Misturava-se o vazio dela à consciência, à vontade, ao prazer e à dor que, sem contornos, cirandavam por onde não os queria. E chorava, gemia, achava que de algo mais carecia, além da imensa colecção de quem viu e tocou, de quem pegou o feitio, a forma, a sede. Era um José feito de todos os nomes, de todas as viagens, de todas as terras que sofreu e que inventou. Era isso que lhe dava licença para entrar e sair, para ficar. Amadureceu e, desta vez, sentiu que não estava pronto. Já tinha a prudência consigo e já aprendera que possuí-la implicava ter medo. Dos outros, do fim, do caminhar acompanhado, do seguir sozinho.

Pegou-lhe como quem afaga e ela, a cobra, deu-lhe todo o veneno que podia. Agora a noite descia, apesar da luz por ainda ser dia.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 06/12/2017
Reeditado em 06/12/2017
Código do texto: T6192046
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