CONCILIAÇÃO
 
Encontrei hoje em ruas, separadamente, dois amigos meus que se haviam zangado um com o outro. Cada um me contou a narrativa de por que se haviam zangado. Cada um me disse a verdade. Cada um me contou as suas razões. Ambos tinham razão. Ambos tinham toda a razão. Não era um que via uma coisa e outro outra, ou que um via um lado das coisas e outro um lado diferente. Não: cada um via as coisas exactamente como se haviam passado, cada um as via com um critério idêntico ao do outro, mas cada um via uma coisa diferente, e cada um, portanto, tinha razão. Fiquei confuso desta dupla existência da verdade.
                                                                                                                                                                                                                                  Fernando Pessoa
 
 
 
 
Terminou mais uma semana de conciliação promovida pelo Conselho Nacional de Justiça. O Judiciário brasileiro, sempre abarrotado de processos, tem incentivado os meios alternativos de solução de conflitos como forma de diminuir o estes números e agilizar o andamento dos processos. Por imperativo constitucional, todas as demandas devem ser apreciadas pelo judiciário, não importando quão ínfima seja.
 
Atualmente, busca -se reformular essa política de intensa judicialização e  criar, paralelamente, uma  cultura de conciliação e mediação,  na qual os conflitos são resolvidos por meio do acordo e concessões mútuas das partes, numa justiça "multiportas", sem depender, necessariamente, da sentença do Juiz. As vantagens são enormes! Geram benefícios de longo prazo, pois quando a solução é construída pelas partes, estas se esforçam para cumpri-la. Não há a imposição de um terceiro como se dá na sentença.
 
O maior dilema que se impõe ao julgador, conciliadores e mediadores no processo é descobrir a lide sociológica que está sendo  posta ao judiciário. Na maioria dos casos, o que está no processo não é  a verdadeira causa do litígio. Varas de famílias é o maior exemplo. Marido e mulher brigam até pelo lençol.  "Picuinhas" acumuladas ao " longo do tempo", acabam indo parar no Judiciário sob forma de outras demandas. Não é  à toa que existem brigas familiares que se arrastam há anos, em que  as partes sequer sabem mais o real motivo da contenda.
 
Algumas situações ilustram bem o que quero demonstrar.  Um caso bem típico se deu na justiça do Trabalho: o conciliador já tentava fechar um acordo há horas e sempre que estava quase conseguindo alguém desistia. Ele, já experiente, percebeu que tinha algo  naquele processo além da demanda posta. Era um caso aparentemente simples. Um empregado tinha sido mandado embora pela patroa e  queria receber seus direitos. Demanda padrão da Justiça do Trabalho, resultando, quase sempre, em fechamento de acordo. No entanto, por diferenças pequenas não se chegava a um consenso.
 
 Quando já estava prestes a desistir, fez mais uma tentativa de acordo,  na qual o autor da ação disse que concordava com a proposta apresentada, mas com uma condição: que a patroa concordasse em se casar com ele. O conciliador  virou-se para a patroa e perguntou se ela aceitava a proposta, e ela disse que aceitaria, caso ele prometesse não sair mais para beber nas sextas -feiras com os amigos. Bem ...  Ali, era um caso de amor mal resolvido, que felizmente, acabou bem.

Em outra situação, uma senhora simples, de um bairro da capital, chegou até o Juizado para processar seu vizinho que tinha comprado 3 cocas- colas no seu comércio (uma mercearia de subsistência). O estagiário que a atendeu, pensou logo: Meu Deus! Ela vai gastar mais do que o valor desses refrigerantes, pois valem menos que  10 reais. Consternado, se ofereceu para pagar o valor.  Ela rechaçou-o dizendo: "Meu filho, ele pagou as cocas-colas, ele não devolveu foram os cascos". Daí começou a falar mal do vizinho e que queria processá-lo de qualquer jeito. Depois de uma longa exposição, ele entendeu que o problema com o vizinho não se limitava aos cascos...
 
Eu mesma pude precisar algo interessante. Um jovem, em torno de uns 30 anos, ajuizou uma ação contra sua vizinha, cinco anos mais  jovem que ele. Motivo: eles dividiam uma casa geminada. Na parte dele, funcionava uma Lan House e ela, tinha um cachorro. Seu objetivo era receber indenização por danos materiais e morais, pois teve que dedetizar a Lan House devido a  dois carrapatos que encontrou no local.
 
 Prevendo que poderia perder toda sua clientela devidos aos carrapatos "assustadores", pegou os dois como prova e os asfixiou dentro de um saco plástico, depois  tirou fotos de todos os ângulos possíveis. Só faltou fazer mesmo a  perícia dos carrapatos.  Alegou que os cachorros são portadores ambulante desses "bichinhos bizarros", e com certeza, aqueles vieram do cachorro da vizinha com o objetivo de acabar com sua clientela. Ajuizou a ação pedido indenizações e proibição de que outros carrapatos entrassem em seu estabelecimento.

Bem... esse é mais um daqueles processos que uma sentença não resolve o caso, pois se não fossem os carrapatos, seria o vento, o pingo d'água, o esgoto ou a peteca da criança jogada ao chão... Enfim, sempre haveria um motivo para a  briga continuar.

 
Esse casos ilustram bem  a lide sociológica que  são os aspectos psicológicos, os interesses subjacentes ao conflito que não constam nos autos. É necessário todo um trabalho de observação pra entendê-los. No entanto, o Judiciário, numa sentença, só resolve a lide processual. O objetivo dá conciliação é resolver, juntamente com as partes, a lide sociológica com soluções construídas por elas mesmas e que possam gerar pacificação social.
 
Nesse último caso que mencionei, tratava-se de irmãos unilaterais, que herdaram a casa onde moravam. Sequer sabem o porquê da briga, pois o conflito nunca foi entre eles, mas entres suas mães, já falecidas, e eles continuam,  por causa de erros ancestrais, aprisionados numa mágoa eterna, "serrando serragem".