OS DENTES DA PRAÇA

O velho de bermuda desbotada e camisa desabotoada - a mesma do dia anterior -, gesticula com as mãos espalmadas. Baixa o tronco levantando o quadril e passa os pés por detrás dos calcanhares, ensaiando uns passos de carimbó.

A senhora obesa segura uma criança com o rosto sujo de picolé. “Sabor graviola”. Sobe com esforço os degraus da escada cinzenta. Na outra mão, a sacola cheia de velhas camisas de propagandas eleitorais.

Nos bancos da arcada direita da praça há algumas cáries. Quatro pixotes observam o descuido da transeunte. A presa usando óculos escuros Ray-Ban conversa ao celular olhando para baixo.

Ataque calculado.

A mão de gato do meliante subtrai o objeto em um salto lateral. O cariado menor há pouco tempo livre do aparelho estatal DCA - Delegacia da Criança e do Adolescente -, que funcionava como grade no intuito de segurá-lo, arranca os óculos da moça por trás.

Na arcada esquerda, há dentes velhos com resquícios de bom esmalte. Oito idosos conversam sobre um passado sempre presente. Tempos idos que também comporão o futuro, já que serão reiteradamente lembrados nos próximos diálogos oportunos.

A língua da praça é ornamentada por piercings em forma de três cavalos, sete faces de leõezinhos e três nereidas; todos dourados. Da boca de uns jorra água em abundância. Alguns cariados se escovam no flúor da fonte: pulam, saltitam e mergulham. Momentos simples de alegria. Os sadios reprovam tal ato. Caminhando para seus destinos, os incisivos meneiam suas cabeças freneticamente para os lados. Outros, molares, trituram a ideia de culpa, descaso governamental e ineficácia dos programas sociais e políticas públicas. Um canino para, inicia um discurso para um dente queiro vestido em paletó negro e gravata azul. Sob a sombra de uma acácia, a fumaça do cigarro traça uma interrogação ao falante com o dedo apontado para os garotos na fonte. O fumante lhe pergunta:

- Por que você não os leva para casa?

Vinte minutos atrás, dois soldados em motocicletas. Estas, quietas, resfriam os motores, próximo à palmeira imperial. Os militares caminham em direção à barraquinha sobre dois pneus de carrinhos de mão. Bebem dois copos de água de coco e resfriam a gargantas fustigadas pelo calor escaldante. Sem cédulas e nenhuma moeda. A nota de agradecimento verbalizada soa fria e metálica. Dentes amarelos que sorriem e se extraem dali, desguarnecendo a praça.

Os cariados saem da fonte.

Quem dera fosse encantada!

Assim, após o banho estariam obturados de seus vícios e clareados em na alma pelo flúor do perdão e compaixão. Contudo, o cloro, as folhas e o lodo compõem o creme causador de comichões e feridas em suas personalidades. Barrigas vazias, pensamentos cheios de esperança por dias timbrados de dignidade. Sobre a rala barba verde da praça, um dos cariados molhados e sob efeito anestesiante de cola de sapateiro se deita. A grama limpa e fresquinha, sombreada por plantas, oferece o irrecusável convite.

Cheiro de milho cozido partindo do carrinho de carcaça de geladeira se espalha no ar, traçando um caminho para o outro cariado percorrer e comprar uma espiga. Ele a saboreia com muito sal, sentado na acne da praça – o hidrante vermelho há muito tempo não utilizado –. Depois, confere o que restou das moedinhas adquiridas na atividade de flanelinha vigiando motos estacionadas no recuo dos lábios da praça.

O pequeno tártaro oferece, com pouco sucesso, pastilhas refrescantes em troca de alguns míseros centavos. O motorista do coletivo, ao parar no ponto de ônibus, nega-lhe a subida pela porta dianteira.

Do orelhão azul da praça, a estudante fardada liga para o paquera economizando os créditos do seu cartão telefônico.

Diz-lhe nove palavras e desliga.

Algodões de nuvens cinza em caravanas pelo céu da boca da praça se direcionam às cidades interioranas. Cairão em lágrimas sobre os ombros das serras.

E que a broca do amor ao próximo obture em nossas coroas as cáries criadas pelo excesso de açúcar dos desejos, pensamentos e ações egoístas, purificando nosso caráter para que a raiz de nossa alma brilhe. Desta maneira, o canal que nos separa de nossos semelhantes poderá vir a ser compartilhado em uma só língua por várias bocas.

De milhares de arcadas dentárias, escutaremos: - Sorri, dente!

Ilton Paiva
Enviado por Ilton Paiva em 02/12/2017
Código do texto: T6188182
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2017. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.