O CEGO, O ACORDEOM, SEXTA-FEIRA E AS INCOMPLETUDES
Sexta-feira, 14h 52, sob abrigo em terminal de transportes urbanos da pç Rui Barbosa de Curitiba, enquanto aguardo exatos 41 minutos até a chegada de “meu ônibus”, observo a rica fauna humana, em permanente e frenético movimento. Quase todos apressados, talvez não tanto quanto necessário, mas porque é sexta-feira, último dia de trabalho da semana para a maioria, quando, por inúmeras motivações pertinentes a cada um, a excitação de mais um "fim de semana" atiça subconscientes, o que se reflete na movimentação em geral. Veículos ficam excitados e tendem a se comportar como se o fim do mundo estivesse preste a acontecer. Frente ao sinal vermelho, por exemplo, motores aceleram, mesmo em marcha “morta”, revelando impaciência, como se o fato da aceleração de motor com o veículo parado tivesse o poder de acelerar também o tempo de transição da luzinha vermelha para verde. Ou avançam “furando”o sinal, ganhando um tempo exíguo que, via de regra, quando conseguido não altera nada de nada que reflita alguma importância. Buzinas soam estridentes, agressivas e desafiadoras, com frequência e por qualquer motivo, ou ao menor “erro” ou “suposto erro” do motorista adversário vizinho; quer dizer do motorista vizinho.
Em meio a isso tudo uma nota dissonante: Um cego, do outro lado de onde me encontro, tranquilamente sentado em um banquinho, sob a sombra de um dos abrigos de usuários de ônibus e tendo ao colo um acordeom, extrai, sem maestria, do surrado e um tanto desafinado instrumento, peças musicais igualmente surradas. Apesar de sua implenitude musical, espalha no ar notas de uma certa beleza só encontrável no singelo. Se ele fosse um virtuose do acordeom, se esvaneceria a beleza de sua arte. Seria uma outra coisa, infinitamente mais bela talvez, mas outra coisa. Outro tipo de beleza.
Toca e toca e toca, 5...10...15...20...25... minutos. Os transeuntes passam por ele apressados, desatentos à magia de sua música. Vez por outra, sem interromper os movimentos de andar rápido, um ou outro joga alguma moeda na caixinha de papelão posta estrategicamente ao lado do banquinho onde senta. E toca e toca e toca, mais 5 ou 10 minutos. De repente os raios do Sol incidem mais diretamente sobre o artista, lhe obrigando a movimentar o "palco" de uma extremidade do abrigo para outra, fugindo do calor. Cuidadosamente, tateando, muda de lugar o banquinho, o acordeom e respectivo estojo. Volta para pegar, junto do chão, a caixinha de moedas para também proceder a mudança. Retira o conteúdo pondo-o em um dos bolsos e, antes de retornar ao acordeom, ajoelha-se e apalpa o chão por uns 30 ou 40 segundos, ao redor de onde estava a caixinha, com as mãos espalmadas - suas mãos naquele momento são seus olhos - à espreita de alguma moeda que eventualmente tivesse excapulido. Eu não sei bem porque, mas essa cena me comoveu. Não que eu tenha ficado com pena do cego por este fato, não, pois considero sua ação naquele modo, à cata das moedas eventualmente perdidas, da maior dignidade e coerência, pois faz parte de sua circunstância e do seu ofício que tão honesta e honradamente exerce. E as moedinhas são os frutos, a paga do seu labor, sua sobrevivência e dos seus. Nada de grotesco, tampouco, houve em seu gesto. Talvez muitos de nós, que não portamos qualquer deficiência, é que às vezes sejamos um tanto grotescos, sem perceber. Por exemplo quando nos perturbamos tanto - e a outros - com ninharias tais como perder uns minutinhos a mais num ponto de ônibus ou no trânsito diante de um farol vermelho...
Enfim chegou minha condução! O cego já retomou seu acordeom e sua arte. As notas trôpegas, desafinadas, e suas outras singelezas musicais perpassam a brisa que agora dilui um pouco o calorão da tarde. Meu ônibus se movimenta. O artista de rua vai ficando para trás, mas eu o carrego no pensamento: ajoelhado e de mãos espalmadas sobre o chão, em sua luta diária, à cata de alguma moedinha perdida. Sem saber e sem querer, com suas incompletudes físicas e musicais, ele me ajudou a ver e corrigir um pouco minhas incompletudes humanas e morais.