O FASCÍNIO DA NOITE

É quando estou desperta. A minha alma se liberta, canta hinos de subtileza inaudita. Na noite, não encontro medo mas o segredo de algo que me chama, afeiçoa, adeja por cima da cabeça, como se por mim velasse. Não há gato negro que não se aproxime, naquele seu ronronar sublime, que não me faça pensar, se serei humana? Louvo-lhe a perspicácia, a beleza, coragem, a destreza, quiçá a linhagem... A possibilidade de conviver com magias ancestrais, tudo saber sem revelar. Na escuridão, tudo se adensa, alonga, e a bruma vem como adorada sombra que se quisera real. De noite, a inspiração está ao rubro, tão palpável como incandescente, num desejo latente de produzir, pensar, questionar, viver, ir e amar, desesperadamente.

Não olho para o caminho demasiado claro, desinteressante, que me adivinha o destino, sem grandes alterações. De dia? De dia controla-se tudo. Controlamo-nos de mais! De noite abrem-se muito os olhos, apuram-se os sentidos, sente-se tudo soberbamente, no seu manifestar. E a Lua? O ponto mais branco, que as luzes invejam e procuram imitar em vão, é-nos mãe. Conselheira. Cúmplice, faceira. Deixa-te olhá-la e sonhar habitá-la. Já o tentaste fazer ao sol? Não! Destruir-te-ia...

Na noite silva uma voz de ninguém que nos abraça. Embala! Tão doce e sedutora. Ouvem-se histórias de monstros, bruxas e seres, de cortar a respiração... E no entanto? Todos se transformam, vêem até ti confraternizar num café qualquer prestes a fechar, entre o fumo de um cigarro, mais um gole de qualquer coisa e és o senhor da natureza. Nada temes, tudo conjuras, dominas, com facilidade. De noite o silêncio é mais puro, a carne mais fraca, mas a vontade mais férrea, determinada. À noite a brisa é um afago, o esvoaçar do teu cabelo perfumado, e o beijo longo e demorado, na boca... Dado a alguém por quem aspiras, deliras, conheces, ou inventas? É... Quente! Ainda que neve. Criam-se e saciam-se as almas sedentas. Amainam as feras violentas, que se amontoam na tua cabeça, cheias de ideias. Não descansas! Não suportas, que tanta beleza e sossego, seja associada com o medo, que grassa. Se desperdice com o dormir, quando tudo pulula de vida.

Porque de noite, por mais sombria que seja, ou a queiram fazer, nunca te sentiste melhor. Trauteias um som familiar, acabas a assobiar. Na escuridão é que te envolves e banhas. Despes de artimanhas e caminhas nu. Ninguém se atreve, te impede de seres um deles... Dos que os outros não entendem e portanto censuram. É assim quando não compreendem que na alma de todos, há duas partes vitais. A do dia em que é suposto ser civilizado! E a da noite em que danças com o diabo, sem te deixares seduzir. De olhos e sentidos bem despertos, andas por caminhos desertos. Sabes bem, onde queres ir.

À noite brindo! De noite me visto. De dia arrasto-me e quase desisto... Se ela não me chamasse e segredasse: "Aguenta! São poucos minutos que faltam para que anoiteça..." Noto logo que me centro, contento, delicio, só de pensar. “Ela está a chegar!”

De noite? Não tenho de "fingir," não preciso sequer de vestir uma pele que não me serve, ela aceita-me imperfeita como sou e eu amo-a incondicionalmente. A noite é... Um maravilhoso presente, de encanto transparente, que me traz reminiscências de onde venho e de certeza, que é para os braços dela que vou.

Maria de Fátima Soares

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Maria de Fátima Soares- Escritora portuguesa.
Enviado por Miguel Toledo em 01/12/2017
Reeditado em 01/12/2017
Código do texto: T6187257
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