Alguém quer saber de você
Lembro quando Theophil chegou em casa com a televisão. Era uma caixa que cheirava diferente de tudo o que havia na natureza. Depois nos colocou no sofá e apagou a luz. Pela primeira vez assistimos algo que lembrava cinema. Não houve grandes mudanças quanto ao rendimento escolar. Hoje a internet está afetando meu relacionamento com Marga de um modo profundo e misterioso. Talvez esteja velho para compreender a produção artificial de sentimentos.
Ontem nos contentamos em ficar em casa. Recebemos a notícia de que Ágria apresentava um quadro de câncer. Havia recebido a notícia do laboratório e ligado em pânico. A irmã morrera em circunstâncias semelhantes e agora a mesma condenação. Enfrentaria a pobre assistência hospitalar. Era preciso ser forte.
Antes do jornal fui para a internet. Havia um nome de mulher com algumas palavras. Lembro-me de que era um nome bonito “Artemisa” e nosso primeiro diálogo manteve-se em pleno conforto poético. Durante anos defluiram às horas em longa quietude de prazer visual. Espécie de conformidade com o grande momento da contemplação assistida. Nossas conversas produziam um efeito positivo e duradouro. Decerto sei diferenciar uma relação normal de outra virtual.
Digitar a mensagem tem o poder de improviso que a carta não possui, exceto na chegada. Recebi a mensagem e pela primeira vez aceitava dialogar de um modo totalmente novo. Fomos levados a nos impressionar com frases nascidas espontaneamente até a angústia da imaterialidade começar a fazer o jogo em busca do corpo físico. Como se cartas chegassem todos os dias, aumentando a vontade da presença. Já com a mente saciada de compreensão dessas forças que movem cada identidade entre o real e o fantástico gastava minhas horas.
Dizia ter cinqüenta anos, heterossexual, caucasiana, amante de leituras pesadas. Suas frases eram polidas o que demonstrava uma educação executiva. Mantinha a luz acesa do diálogo com grande brilho retórico. Conhecia todas as línguas neolatinas. Vivera o seu melhor dia em Harvard durante a formatura. Casou pela primeira vez, mas o destino foi implacável. Um acidente de carro lhe roubou o vivo amor. Todas estas coisas estavam guardadas na memória. Eram resumos de imagem, brotos de idealidade. Sabia de casos de certas pessoas que se corresponderam durante anos sem nenhuma proximidade. Tipo de amor que corresponde ao sentido máximo da incompreensão física. Desafiava o horror que tenho ao platonismo. Após longos anos desapareceu. Vinte anos de relação mental haviam se passado. Em seu último recado solicitou um poema novo para a sua pasta de notas.
A esperança de alguma frase naquele espaço em branco revelava um silêncio impiedoso com voz ativa. O mais estranho dos lutos. A noite sonhava com a morte. Ela ria. Rindo dizia: o desaparecimento é pior dos tormentos! Não era possível ligar e perguntar: por onde anda Artemisa? Sequer narrar o ocorrido. Talvez nem fosse Artemisa. Fato consumado restava uma atmosfera totalmente vã. Guardava um arquivo com as páginas impressas dos nossos diálogos. Passagens bonitas... O que teria acontecido? Havia Marga e por respeito nunca pedimos um encontro. Meu profundo amor real impedia escolhas fáceis. O sentido de infidelidade imaterial legava ao silêncio uma verdade confusa. Quem era? Como era? Que fim teria levado? Em segredo descobri havia amado e que poderia amar mesmo sem consentimento. Que amava Marga, mas que havia me dividido naturalmente. Ficaria surpreso se Marga encontrasse nos papéis nossos encontros. Mesmo havendo apenas um misto de humanidade e curiosidade em nossas palavras. Qual a razão dessas sombras? Às vezes brotava a curiosa culpa que é a sensação do hedonista apenas encantado. Aquele que luta contra a condição de permanência exclusiva sem desejar se perder na informalidade.
Havia saído da reclusão para encontrar um enigma. Um enigma apaixonante que me tornara feliz e triste pela alegre farsa da ubiqüidade. Ao chegar em casa encontrava Marga diante da televisão. Lembrava sempre do dia em que televisão havia chegado em casa.