Assim ou ...nem tanto. 119

O Retrato

Guardara o retrato que retirou do pó na casa velha. Passaram décadas sobre aquela moldura de metal enferrujado que prendia atrás do vidro o rosto, o sorriso, o corpo jovem. Era moda segurar o cabelo longo com uma trança e era assim que Maria estava, apoiada a uma mesa negra com um jarro de vidro no qual as rosas disputavam com o sorriso a atenção de quem olhasse. O vestido de gola subida e mangas compridas caía de modo a permitir adivinhar o corpo firme, levemente sensual, marcado de seios fartos e ancas largas. A imagem, delida já, mostrava um tom sépia que se apagava nos lugares que a expuseram mais à luz. De tudo o que poderia trazer quis apenas o retrato. Era como retomar o que ficara interrompido pelas leis sociais da época, pelas diferenças de educação e pela riqueza dela. Olhava-a e o olhar era correspondido mas isso só o levou a baixar sempre os olhos, a evitar ser visto, a nunca falar na sua presença. Casaram-na por fim com um fidalgo de Lisboa e dele teve os filhos que herdaram a casa, que o contrataram para cuidar dos terrenos asseando o que pudesse, libertando os muros de heras e musgos, revolvendo o campo para semear o que entendesse. Voltariam pelo Natal para os acertos de contas e, até lá, ficava tudo sob a sua guarda. E as lágrimas rolaram pela pele queimada de sol e caíram no vidro. Olhando a figura, disse todas as palavras que teve trancadas tanto tempo. Quem nunca confessou o afeto que sentia, falhou definitivamente o amor, pensou. Era como ter errado um alvo a que nunca atirou.

Edgardo Xavier
Enviado por Edgardo Xavier em 29/11/2017
Reeditado em 29/11/2017
Código do texto: T6185705
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