AO ANCIÃO “MENINO-HÔME”

Não faz muito tempo que ele, professor das realidades, fazia seu ponto de esperança ali na porta do parque.

Era a época dum Brasil que prometia o mundo...sem fundos e acredito que ele (ou os dele!), como tantos outros brasileiros, também acreditaria.

A primeira vez que lhe escrevi ele ainda era menino.

Todas as manhãs dos finais de semana eu o encontrava ali, dono duma pele dum viço brilhante, o milagre que sempre reluz em todos os começos, ainda que desnutridos; sempre a calçar um par de sapatos social surrado mas engraxado por ele, -contava- bem lustrozinho, dando a parecer ter pego a gravata do pai para fixar no seu colarinho branco mal passado, num nó desgrenhado ainda por se aprender a desatar e reatar pela vida.

Na cintura trazia a elegância dum cinto de couro preto, que dançava na sua circunferência abdominal bem franzina a segurar uma calça social de gabardine cinza, de número bem maior que o dele.

Assim que o parque abria suas portas, por volta das sete da manhã-aliás, portas que nunca se abririam para sua vida, ele se postava ali como um trabalhador compromissado, pontualíssimo, a olhar os carros, a limpar os vidros por uma gorjeta, a conversar com os transeuntes num sotaque não paulistano, a traçar com esforço um caminho quiçá arriscado, ainda que fosse só de rascunho.

Vez ou outra eu parava para conversar com ele e não me foi difícil perceber que precisava duma ajuda cognitiva para caminhar pela vida.

Mas...ninguém notou. Nem os próximos e tampouco os distantes.

O tempo passou, como passa para todos nós na sua relatividade tão objetiva e dura, num aviso premente de que não há voltas, é preciso seguir, como assim o é o tempo exato para que uma folha se desgarre da árvore na mudança das estações e voe para nunca mais.

Sim, eu sei que ele já mudara de estações várias vezes na sua ainda recente jornada. Eu vi.

Foram muitos os outonos, primaveras, verões e invernos que eu o avistei ali, como se para ele o tempo corresse inerte e traiçoeiro a lhe cochichar promessas de oportunidades de vida.

Quem sabe um dia?

Não, o tempo não esperou. O tempo nunca espera porque tem preguiça de ficar.

Dia desses eu o avistei ainda ali, numa senilidade precoce de assustar.

Sentado na mesma calçada que assentou seus sonhos intangíveis, ele cheirava algo que não sei explicar.

Talvez fosse o perfume de todos os descasos, via qualquer droga que invade a cidade e a vida daqueles que passam sem ser notados.

Ele, um já ancião professor do todo, até ontem um “menino-hôme” , como tantos deles recém- chegados à cidade cantada em verso e prosa, a que faz acontecer nos nossos corações alguma coisa que me faz crer se tratar dos mesmos sentimentos inexplicáveis de Sampa, aonde tudo acontece, mas e infelizmente, aonde tudo pode ser possível: menos sobreviver na invisibilidade plantada num solo parasitado e drenado por tantas ervas daninhas...

Ele tentou, eu sei que sim.

A despeito de tudo, ele tentou como tantos outros que não vi.

A culpa não é dele.

A ele e ao seu cenário etiológico, só aprentemente invisível, eu dedico minha poesia em prosa.

A ele escrevo com a emoção de testemunhar um futuro perdido no mutismo dum teatro social hipócrita e desumano, esse que nos paralisa em pleno palco atávico; e ao restante do seu bastidor, à trama de contra-regras do seu inexorável drama, eu dedico a minha indignação poética, a de, ao vivo e dentre as cinzas da cidade cinza, testemunhar um script de vida tão indigno...o que ele decerto não escolheria.

À poesia eu agradeço por poder estar aqui.

Por ser ela a única visibilidade que acolhe a todos...e sem cobrar propina.