A coisa vai ficar preta


Hoje, acordei com essa frase: “A coisa vai ficar preta, muito preta, e vai ser lindo de se ver! Eu acredito!”. Foi dita por uma amiga que é a prova viva de que as coisas estão mudando. Ela é mulher, negra, tem mestrado, é professora de uma universidade no Rio de Janeiro e brevemente tomará posse como juíza.

Sim, os negros, com o preconceito e apesar dele, estão  transpondo a barreira histórica existente no Brasil, a linha, para alguns imaginária, que separa os negros dos brancos. Com muita luta estão conseguindo ter alguma representatividade social. No entanto, é necessário mudanças de atitudes e até mesmo de pensamento, principalmente, no que diz respeito ao significado das palavras, o que facilitaria mudanças no "status" dos negros.


Condenar a fala de um jornalista não resolve o problema do preconceito existente. É preciso combater a causa  dela. O que ele disse está no imaginário de muitos: “É coisa de preto”. Sim! Coisa de preto pode significar o mesmo que coisa de branco, é preciso re - significar as palavras. Não quero censurar ningúem, tampouco tratar propriamente de racismo, este já temos lei para combatê-lo. O que não temos é como combater o preconceito nosso de cada dia, a forma de  como o negro é visto na nossa sociedade, até por eles mesmos. O  combate deve ser ao estereótipo e à simbologia impregnada no nosso imaginário popular, do qual não escapamos, facilmente, no nosso processo de socialização.

A frase dita acima, de início, causa impacto, pois dá a ideia de coisa ruim. No entanto, é isso que precisamos mudar, o significado das palavras, para quando ouvirmos uma frase dessas entender que ficar preta é porque o Brasil um dia dará aos negros o seu lugar devido na sociedade. Aí sim, ficará preta mesmo porque é bonito de se ver uma sociedade multicolorida e multicultural com interculturalidade latente.

O preconceito que vem das palavras, do processo de construção social, só irá acabar com a mudança de concepções da nossa visão de mundo. Essa mudança não depende só da lei, mas da reconstrução social da imagem do negro, de um processo de auto- identificação para que se reconheçam como parte desse todo social que é o Brasil.

Dizer que os negros são tratados de forma igualitária é falácia. Existem três tipos de igualdade, a formal, que está na lei, a material e a de identificação. As duas últimas é que estão sendo implementadas para que haja representatividade. Insere- se no bojo de um conjunto de politicas públicas de mudança de mentalidade. A escravidão ainda é recente, todo o arcabouço ideológico para justificá-la ainda está no nosso imaginário, carregada de simbolismo para nos incutir a ideia de inferioridade do negro. Sem perceber, usamos expressões que denotam isso, que machucam e corroem a auto -estima de muitos, que como eu, são negros e negras que formam essa nação.

Há muitos questionamentos quanto às cotas para negros, sejam em universidade ou no serviço público. É um direito de cada um ser contra ou a favor, mas devemos usar argumentos coerentes e não distorcer os fatos. Cotas para negros não é o mesmo que cotas sociais por questões financeiras. Se fosse instituída cotas para negros pobres elas seria inconstitucionais porque pobreza não tem cor. Preconceito sim! Um pobre branco sendo rico deixa de ser discriminado, um negro rico continua sendo negro porque dinheiro não muda a cor da pele.

Estatisticamente, o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) divulgou que somente 15% dos juízes são negros. Se olharmos por região, a coisa piora, visto que os negros representam mais da metade da população brasileira. Há uma dívida histórica para com eles. As cotas visam criar representatividade, o que vai influenciar nas gerações futuras de brancos e de negros. Faz parte do processo de auto - identificação, de reconstrução social da imagem dos negros. Há cerca de uns 50 anos, os papéis dos negros no teatro eram feitos por artistas brancos porque negro não podia pisar num palco. O Brasil, que tanto exalta a mulata, pela primeira vez tem uma negra como miss Brasil; infelizmente, ela tem sido discriminada com palavras de baixo calão, simplesmente por  ser negra. Sejamos honestos! O Brasil não tem igualdade real!

Vou dar um exemplo, uma Juíza negra contou que um senhor, numa cidade do interior, foi até o foro para conversar com ela. Ele pessoa simples, de cor parda, - pardo é complicado,  perto do preto ele se sente branco, perto do branco ele se sente preto, rs. O atendente  pediu que ele aguardasse para ser atendido. Pouco tempo depois, ela saiu do gabinete e foi à recepção onde ele aguardava. Quando a viu foi logo perguntando se a juíza ia demorar porque ele estava com pressa. Ela disse que era a juíza. Olhou-a com cara de espanto! Isso é o que está no nosso  imaginário: a ideia de que negros não ocupam cargos importantes.

As cotas visam tirar  essa ideia de que o cara bem vestido do shopping é o segurança, a moça passeando com as crianças é a babá, ou ainda de que a mulher bem vestida do foro é a atendente. No entanto, como toda política afirmativa, deve servir para igualar uma situação que se revela desigual, e não como motivo de privilégio, por isso são temporárias.

Quando usamos expressões que precisam de uma explicação é porque estão carregadas de preconceitos. Minha mãe era negra, meu pai branco, as pessoas se referiam a ele dizendo que casou com uma negra, mas pense numa negra honesta! Muitas são as palavras: é negro, mas é decente; é negro, mas é gente boa; é negro, mas é trabalhado; o lado negro da força, a coisa vai ficar preta. Esse "mas", é que revela nosso preconceito.

Não vou muito longe, quando meu filho nasceu, esperavam aquele bebê de propaganda de fralda descartável. Ele nasceu mais bonito (sou a mãe, rs). Não é branco e loiro como o pai. Eu sou negra de pele parda, sei bem como é esse ser quase branco e quase preto. Uma determinada pessoa, que conheço bem, e sei que não é racista, sugeriu que eu esquentasse óleo e fosse massageando o nariz do garoto pra ficar afilado porque era achatado. São essas pequenas coisas que tem que ser avaliadas pela vertente do ofendido e não do ofensor, porque geralmente ele está apenas reproduzindo, sem filtros, o que lhe foi repassado. São palavras e piadas que machucam e alguns sequer percebem isso.

Mas, quando achamos que já estamos no fundo do poço dos preconceitos, sempre conseguimos nos superar, pois até os negros estão atirando pedras também. Com a chegada de vários negros vindo do Haiti, em especial nas regiões norte e sul do país, através do refúgio ambiental, vi várias pessoas, negras e brancas, dizendo que se não bastasse os negros daqui ainda veem os de fora. Bem... O preconceito sempre acha uma válvula de escape para se mostrar.


Daí a necessidade da mudança de mentalidade. Não basta a Lei! É preciso que as crianças negras e brancas de amanhã tenham referências de que é possível ser o que elas quiserem, não importando a cor da pele, que deem  a elas as condições de se sentirem parte desse arcabouço cultural chamado Brasil.

Essa mesma amiga da frase acima, semana passada, se hospedou num hotel, com um padrão um pouco mais elevado, em Recife. Além dela, tinham mais dois negros, o barman e o garçom. Ela é sempre muito observada nos lugares onde anda por causa da chamada igualdade por reconhecimento, se sentir parte nos ambiente em que frequenta. Foi até a recepção para saber o horário do café. Lá a recepcionista estava ocupada e ela ficou aguardando para ser atendida. Logo em seguida, chegou um homem nos “padrões” do hotel. Embora ela tenha chegado primeiro, a jovem parou o que estava fazendo e foi perguntar em que podia ajudá-lo. Ela fez um escândalo? Não, apenas disse que adquiriu um pouco mais de consciência de que ainda precisamos melhorar e que ela como futura magistrada negra terá um importante papel para que negros e negras possam se reconhecer em qualquer papel num pais de racismo velado...  Mas, pela frase dita acima por ela, com certeza estamos no caminho certo!