A viagem derradeira do encantado - Guimarães Rosa
 
     Há cinquenta anos o encantado fez a viagem derradeira. Nonada, meu senhor, foi o fim não; ele virou buriti, água azulada, canoa na terceira margem do Velho Chico – travessia, seu moço. Não sorria desacreditado, dou fé no que digo, vejo ele nas veredas de minha fantasia, olho d'água da ilusão. Pego a viola e assunto o mundo rodar devagar, no range rede dos dias calmos; as vistas desembaçam e enxergo ele, inteiro, feito remanso de rio largo – amor que vem de amor, minha neblina.
 
     É doidice não, vejo o seu Guimarães! O encantado vive por aqui, proseia comigo, tem um monte de nome dele espalhado nesse sertão... Riobaldo, Diadorim, Joca Ramiro, Manuelzão, Miguilim, Sete-de-Ouros... até Hermógenes - o diabo na rua, no meio do redemoinho – cruz credo, me arrepio de falar, mas Deus vem vindo, eu sei, ele ataca bonito, se discutindo, se economiza, seu João me contou – milagre!

     Essa melancolia mora no coração da gente, apeia no pensamento e arreda pé, não, faz morada. Começo a lembrar de coisas desacontecidas, avessos meus, padeço pelo não sucedido – caminho nesses vazios, silêncios gritando dentro de mim – o encantado contando histórias. Arrumo coragem e vou entoando, na tristeza da alma: “quando vou pra dar batalha, convido meu coração...”. Olha ele lá no meio da tropa – caderninho na mão, escrevendo bonitezas.

     Cavuco o sossego na beira do rio, vou encontrando alento, o mistério ronda meu juízo, aperreio não – o Seu Rosa dobrou a curva da estrada, mas seu encanto paira feito a brisa leve do Velho Chico – travessia, seu moço, travessia.
Wal Bittencourt
Enviado por Wal Bittencourt em 19/11/2017
Código do texto: T6176473
Classificação de conteúdo: seguro