Nulla dies sine linea 12/11/2017
Dois grandes ensaios de René Girard sobre sobre a filosofia de Nietzsche, Nietzsche contra o Crucificado e O Super-homem no subterrâneo, presentes no volume A Voz Desconhecida do Real: Uma Teoria dos Mitos Arcaicos e Modernos (Instituto Piaget).
O fascinante problema da relação Nietzsche x Wagner.
Sempre pareceu-me que o Nietzsche do Nascimento da tragédia tinha razão contra o Nietzsche de O caso Wagner. É Wagner quem alcança o paganismo puro, que passa longe de tudo que é cristão. Wagner é tudo aquilo que Nietzsche queria ter sido e não foi. Wagner, filho de uma família de artistas, desenvolve sua arte numa espécie de paganismo puro e simples; Nietzsche, de uma família de pastores protestantes, dedica boa parte de suas energias a combater de maneira virulenta o cristianismo. Wagner é pagão, Nietzsche gnóstico. Wagner, o artista realizado; Nietzsche, o gênio talvez ressentido.
Até mesmo quando toca o cristianismo (no Parsifal) Wagner é pagão.
Às portas da loucura, Nietzsche prefere Bizet e Offenbach a Wagner e considera esse último um décadant.
Os suspiros dos solitários e dos transviados na “Aurora” de Nietzsche não deixam de ser, literalmente, sintomático:
“Ah! Dêem-me ao menos a loucura, poderes divinos! A loucura para que termine finalmente por acreditar em mim mesmo! Dêem-me delírios e convulsões, horas de claridade e de trevas repentinas, aterrorizem-me com arrepios e ardores que jamais mortal algum experimentou, cerquem-me de ruídos e de fantasmas! Deixem-me uivar, gemer e rastejar como um animal: contanto que adquira a fé em mim mesmo! A dúvida me devora, matei a lei e tenho por lei o horror dos vivos por um cadáver; se não sou mais do que a lei, sou o último dos réprobos. De onde vem o espírito novo que está em mim, se não vem de vocês? Provem-me, portanto, que eu lhes pertenço! — Só a loucura a mim o demonstra”.
Dos ensaios de Girard
“Os pensadores que, como Nietzsche, na sua pressa febril de se desembaraçarem do ‘ressentimento’, fizeram apelo, de uma maneira bem leviana, à vingança verdadeira, a de Dionisio, parecem-se com essas personagens insensatas dos contos de fadas que pedem os desejos errados e ficam acabrunhados quando eles se realizam”.
“Um antropólogo positivista não vê nenhuma verdadeira diferença entre a história de Rómulo e a de Caim. Nas duas histórias, um homem mata o irmão, e esse assassínio funda uma comunidade humana. Os dados das duas histórias são idênticos mas a interpretação da Bíblia é completamente específica: com efeito, ela vê um crime onde os Romanos vêm um grande feito”.
“Nietzsche não gostava de Cervantes, que acusava de cruel ‘ironiesierung’ em relação àquilo que ele chamava ‘ideais elevados’. No entanto, teria feito melhor em ouvi-lo, constituindo Dom Quixote um antídoto muito melhor contra a loucura do que toda ciência psiquiátrica e psicanalítica”.
“Nietzsche reduz Bayreuth a um esforço colossal da parte de Wagner para organizar o seu próprio culto. Provavelmente não está enganado mas esquece que ‘Ecce Homo’ é o par exacto de Bayreuth, é a sua própria réplica a Bayreuth, ainda mais, um verdadeiro acto de represálias, e portanto, nessa qualidade, um acto idêntico àquele contra o qual actua. A única diferença entre Wagner e Nietzsche é que o primeiro está rodeado de uma verdadeira corte de admiradores, enquanto o segundo só tem como adorador ele próprio. Tem que ser ao mesmo tempo o ídolo e o idólatra, o que não se pode aguentar muito tempo”.