TEORIA DO MUNDO JUSTO
Recentemente uma jovem foi morta ao dar uma carona combinada através do aplicativo do whatsapp. Em pouco tempo chegou-se ao assassino. O que chama atenção é que em menos tempo ainda a vítima passou a ser culpada. Como assim? Culpada por não ter evitado sua própria morte, por ter se colocado em situação de risco.
No Direito penal ao determinar o quantum de pena a ser imposta na sentença o Juiz deve analisar o grau de culpabilidade do réu. Um dos requisitos exigidos é saber se o comportamento da vitima contribuiu para o crime. No entanto, os juízes à luz de uma interpretação hermenêutica atual, não aplicam esse requisito legal considerando essa circunstância como neutra.
A lógica é que a atitude da vítima não pode servir para justificar crimes contra ela mesma. O fato de uma pessoa estacionar o carro numa rua escura não pode servir de justificativa para ser roubada, a roupa que a mulher veste não determina se deve ou não ser estuprada. Por motivos culturais, as principais vitimas desse tipo de atitude de culpabilizaçao são as mulheres, punidas duplamente, em especial nos crimes de estupro em que sempre se busca culpar a vitima por não ter se comportado "adequadamente" para evitar o crime.
Por trás dessa culpabilização da vítima existe uma teoria desenvolvida por Melvin J. Lerner, segunda a qual, essa necessidade de culpar a vitima faz parte de um artificio psicológico em que o indivíduo para encarar eventos bizarros como mortes violentas, estupro, pobreza, racismo e outros... desenvolve uma crença de que o mundo é justo, de que cada um tem o que merece. Por ela, acredita-se que coisas ruins só acontecem a pessoas más, que cada um recebe o que merece e merece o que recebe.
É simples, não queremos admitir que há certa aleatoriedade na vida, que as coisas acontecem independentemente de nossas ações e do nosso controle, isto nos coloca no olho do furacão, o que gera desespero. Pense no desespero de todos os pais imaginando que seus filhos podem ser vítimas de um colega atirador na escola, ou de que sua filha pode sofrer abusos sexuais!
A teoria serve para evitar a culpa, admitir que o que acontece a uma determinada pessoa está entrelaçada num todo do qual fazemos parte é admitir que somos também culpados, ao menos na modalidade omissiva. É também dizer que nem tudo que temos é por merecimento, pode ter sido fruto de meras circunstâncias de vida.
Assim, as pessoas desenvolvem formas defensiva de se sentirem seguras. É necessário acreditar que o que aconteceu com ela não acontecerá comigo porque não faço por merecer. A ideia que subjaz é: eu não daria carona, eu não ando no escuro, não uso roupas provocantes, meus filhos não praticam bullying.... Estou a salvo.
Mas essa teoria não se limita à esfera penal, é utilizada para justificar as desigualdades sociais e até o racismo. Por que alguns são pobres e outros ricos? É pobre porque merece...Talvez seja preguiçoso, não corre atrás, deve está pagando por alguma coisa... Essas são as explicações possíveis para acalmar a consciência.
A culpabilização da vitima serve para desviar nossa atenção do verdadeiro culpado: o Estado, e por consectário lógico a própria sociedade. A ineficiência do estado em propiciar segurança ao cidadão, em prover o mínimo existencial necessário é latente. Estamos entregues à própria sorte, o Estado falhou em termos de segurança. Independentemente da forma de Governo escolhida pela sociedade, segurança é função básica em qualquer deles, seja monarquia, parlamentarismo, totalitarismo ou democracia. A segurança dos cidadãos é assunto sério, não pode ser relegada a segundo plano custando a vida de inocentes. É inadmissível deixar de prender criminosos perigosos por falta de vagas em presídios.
Admitir que houve falha do Estado na punição do autor do crime, por delito cometido anteriormente, é dizer que a sociedade também falhou para prevenir a morte dessa jovem, sendo mais interessante culpar a vitima, pois assim ninguém é culpado, somos todos inocentes. Foge-se do debate sério para resolver o problema da segurança no país. É preferível pensar que só acontece com quem merece, pois cada um tem o que merece, porque o mundo é justo! Assim, alivia-se a culpa e criamos uma falsa sensação de segurança, juntamente com todos os ofendículos que usamos em nossas casas.
É consenso que em qualquer democracia o Estado deve possibilitar direitos fundamentais básicos, com oportunidade para todos em matéria de educação, saúde, trabalho e segurança. A Constituição brasileira garante esses direitos, mas na prática é letra morta, prevaleceu como norma de conteúdo programático para um dia ser implementado. Um dia...
Continua a velha história do bolo, que já vem desde a implantação da República no Brasil, passando pela época da ditadura militar e processo de redemocratização do país, em que se dizia que era preciso progredir, fazer o bolo crescer para depois dividi - lo. Parece que o fermento não funcionou, pois, ou esse bolo nunca cresceu, ou alguém o comeu sozinho sendo que até hoje ele nunca foi dividido, ficamos somente com a conta.
Assim, até que isso ocorra, enquanto não houver igualdade substancial entre as pessoas, tratando os iguais igualmente e os desiguais desigualmente, na medida de suas desigualdades, respeitando-se a dignidade da pessoa humana e proporcionando o mínimo existencial a todos, não podemos esquecer: a culpa não é da vítima.