Pensando com o dedo do pé
Sofri um acidente grave. Um extintor de incêndio de uns 25 quilos caiu de uma altura aproximada de dois metros em cima do meu pé na garagem do meu prédio. Podia ter ficado aleijado para o resto da vida e nunca mais andar direito. Tudo isto por causa da displicência de alguém que não prendeu corretamente um gancho na parede. Foi o que eu pensei, quando a dor me deixou pensar, ao ver a bucha e o gancho soltos no chão.
Não! Não processei o condomínio. Não ia adiantar. Iam me pagar uma merreca que não ia diminuir em nada as semanas de sofrimento pelas quais passei e eu, ainda por cima, ia arrumar briga com o síndico. Mas, e o aprendizado? Não seria o caso de fazer o pessoal aprender a ser mais responsável? Lamento muito, mas eu não acredito na didática do castigo e da punição e acho que nós humanos merecemos mais do que Pavlov. O aprendizado que daí resulta é deplorável e, de próxima vez, o sujeito podia até prender direito o extintor, mas ia deixá-lo sem carga o que poderia levar a danos ainda maiores. Tampouco planejei vingança ou alimentei o ódio, não porque eu seja virtuoso, mas, simplesmente, porque prezo a minha racionalidade e acho que estes sentimentos em nada ajudam. Pelo contrário, aumentando o sofrimento dos outros a probabilidade é grande que sobre para nós também.
Nada disto, no entanto, eu queria contar. O que eu queria contar é dos meus dedos do pé, principalmente o mindinho que ficou reduzido a uma massa de tal maneira disforme que nas primeiras semanas evitei olhar. Nunca mais eu ia poder usar tênis, nunca mais eu ia andar direito, sem mancar. Adeus passeios e caminhadas, adeus ginástica e ioga. Foram os pensamentos que passavam pela minha cabeça enquanto o tempo ia passando.
O tempo passou e, um dia, aquele cascão preto que cobria o meu dedo mindinho, passou também, isto é, desprendeu-se e caiu. Olhei cuidadosamente o que tinha sobrado, qual o toco, cotoco que restaria se ainda restasse alguma coisa. Qual a minha surpresa ao verificar que debaixo daquela crosta grossa e enrugada, surgia, qual fênix das cinzas, um dedo novo, perfeito, róseo como pele de bebê. A unha era lisa, brilhante, melhor que a do dedo do outro pé.
O sentimento foi de profundo regozijo. Eu, no ocaso da vida, tinha dado à luz. Tai uma experiência, que eu nunca tinha tido e que agora me era dado vivenciar. Tinha me sido dada a oportunidade de viver a gestação, o nascimento, a experiência maravilhosa de dar origem a algo novo! Debaixo da capa grossa feita de sangue e fluidos, o meu corpo tinha pacientemente, persistentemente trabalhado para produzir aquela jóia, aquela gema, um dedo, pequeno, ínfimo, mas perfeito, róseo, brilhante, com tudo aquilo que um dedo precisa para funcionar. No meu caso além de nascimento tinha sido renascimento e esta experiência é particularmente importante quando a idade vai chegando e o fim passa a ser algo mais concreto e palpável.
Valeu, valeu todo o sofrimento, as semanas insones rolando na cama com dor, o desânimo, os pensamentos negativos, para vivenciar na prática e, ainda por cima, dentro do meu corpo, a força que existe no ser, a força do constante renascimento que leva adiante esta cadeia que se chama vida.