Fui pra rua em Brasília

Sendo previsto que naquele dia aconteceriam os maiores protestos de todos os tempos em Brasília, decidi também eu me dirigir ao Congresso Nacional e ali acompanhar a História sendo feita sob os meus fiapos de barba. Iria na condição de antropólogo ou cronista social, e não na de manifestante. Eis a dura e patética realidade: eu não queria protestar. Devia trazer comigo um ou outro motivo de revolta, como todo cidadão de bem, mas – ai de mim – eu também tinha muitas dúvidas sobre o certo e o errado, e não se pode protestar sem ter certeza de que está certo. Mas naqueles dias – era junho de 2013 – não havia mais dúvidas no país. Eu tinha que ver isso de perto.

No caminho até o Congresso, encontrei um verdadeiro caos na Rodoviária: havia uma multidão impressionante aglomerada, mal podendo se mexer, e vários ônibus parados, não conseguindo entrar nem sair. Ou seja, não havia nenhum protesto por ali, era um dia como todos os outros. Segui adiante.

Não tardou até que eu encontrasse o primeiro grupo de manifestantes, erguendo cartazes e soando apitos. Vi também um casal de alienados que estava a se beijar apaixonadamente, longe de todos, no que configurava um imperdoável boicote aos protestos.

Àquela altura, a Esplanada dos Ministérios já havia sido fechada para os manifestantes. Uma coisa que achei admirável nas manifestações era que todo mundo estava a favor delas – até mesmo quem devia estar contra. Passei pela Biblioteca Nacional, que era um dos melhores motivos que eu teria para protestar em Brasília – basta dizer que não havia livros por lá. E continuei caminhando, agora já no meio de uma multidão que também ia ao Congresso e dava gritos de amor ao Brasil, essa abstração em que vivemos.

No gramadão em frente ao Congresso já havia um número incrível de pessoas. Sou um homem de natureza medrosa, mas, bolas, já que havia vindo até ali, eu resolvi ir até a linha de frente – ou seja, onde estava o cordão policial. Ali pipocavam gritos de “Ei, soldado, cê tá do lado errado”. Um sujeito se postou à frente dos policiais e esfregou um cartaz em que defendia a desmilitarização da PM. “Isso também é por vocês”, berrou outro. De repente, estourou um grito de “Ocupa e resiste”, logo simplificado para “Vamo invadir”. Recuei alguns passos, eu não queria invadir e, principalmente, eu não queria apanhar.

Olhei por todo lado e só vi cartazes. Nunca se vendeu tanta cartolina em Brasília. Era a corrupção, a Copa do Mundo, a PEC 37, o Ato Médico, Belo Monte. Tudo virou cartaz. Dois evangélicos erguiam um “Ore pelo Brasil”. Um filósofo, sensato, preferiu expressar um “A mudança vem de dentro”. Também havia uma garota dizendo “Que só os beijos te calem a boca”. E um piadista dizia “Fora Fátima” – queria de volta os desenhos animados da TV Globinho.

Bombas estouravam em algum lugar, seguidas de vaias. Gritos de “Fora Renan” faziam sucesso. De repente, uma correria perto de mim. Corremos. Em seguida, gritos de “Senta”. Sentamos. Alguém puxou então o Hino Nacional. Dois raios lasers furavam o bloqueio e invadiam o Congresso, riscando a torre e as cúpulas. Os raios também atingiam helicópteros. “Chega de ilusão”, dizia um carro de TV pichado.

De repente, a multidão começou a seguir para o lado oposto do Congresso. Só fomos entender na hora em que chegamos: iríamos fechar o Eixão, uma das avenidas de Brasília. Eu fechei o Eixão também. E os carros buzinavam em aprovação. Um sujeito me pediu para tirar uma foto dele com uma bandeira contra a Globo. Pessoas nos observavam dos prédios nas superquadras e eram intimadas: “Vem pra rua!”.

Olhei ao redor. Não sabia o que estava acontecendo, não sabia no que aquilo tudo ia dar. Mas já tinha alguma coisa para contar aos meus netos.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 12/11/2017
Reeditado em 12/11/2017
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