Assim ou ... nem tanto. 117
O Caminho
Quando dou conta de mim, da minha existência, estou escarranchado nas costas da mulher que engomava, com ferro aquecido a carvão, alvos lençóis previamente lavados, fervidos, corados ao sol. Cheiro o fumo do cigarro preso na boca dela com o lume para dentro e inicio um protesto prontamente embalado pelo corpo que me sustinha numa dança que acompanhava com uma melodia de acalentar. A seguir, choro muito porque não quero ir à Escola. Depois de um tempo longo, gosto de reportar casos com desenhos e escrevo explicações complementares no papel. Quando reparo um dia no meu corpo já há pelos nas pernas e tenho um buço forte, voz bitonal, angústias, sonhos, desejos. Ninguém acreditaria que a minha vida fosse diferente da dos meus irmãos, amigos, familiares. E, contudo, era. Vi cedo outras coisas em que ninguém reparava, aprendi a escolher as palavras, a redigir com cuidado, a porfiar no grafismo por me parecer tudo importante num texto. Quando me apresentei ao amor e ao sexo a vida teve nisso centro, eixo de rotação, exclusividade. Fui a sensualidade com pernas, a dissimulação, a manha, o gosto de me aventurar onde pudesse sentir novidade. Vivi intensamente. A maturidade trouxe-me algum equilíbrio e faço muito uso dos meus acidentes de percurso, das experiências e descobertas, da vontade de me integrar. Gosto de ver os outros alegres e sou, se for preciso, o palhaço e o louco da história. Quando ao fim de cada dia me recolho a mim, se ainda tiver fôlego, contabilizo os afectos, perdas e danos, esperança e durmo com força. Como outro justo comum.