PEQUENO GRANDE VIGIA

Nem todos os mortais revelam grande disposição para fazer compras ou mesmo para simplesmente ingressar em centros comerciais. Praxedes era um desses tipos. Quando ia com a mulher a um dos muitos pequenos centros comerciais de Brasília, geralmente localizados na proximidade de área residencial, não sentia vontade de acompanhá-la à padaria, à mercearia ou a qualquer dos estabelecimentos ali situados. Preferia ouvir músicas no rádio do carro, se o clima estivesse propício, ou então sair do automóvel e caminhar nas redondezas, sem perder de vista, é claro, o retorno da senhora com suas compras.

Numa das vezes em que caminhava, distraído com seus pensamentos no Fluminense Futebol Clube, surpreendeu-se ao ouvir um “oi, tio” bem a seu lado. Voltando o olhar para a voz, viu o menino que o fitava, sorridente. Em rápida avaliação, considerou tratar-se de um garoto magro, mas não franzino, vestido de forma bem modesta, embora aparentemente limpo. Observando-o mais, julgou que não era branco, nem afrodescendente, enquadrando-se, mais decerto, na ampla parcela de meninos de tez morena, talvez de ascendentes indígenas ou mestiços, comuns na terra brasileira. O mais importante era que o menino tinha jeito de gente boa, nem de longe podendo alimentar a suspeita de pivete pronto para assaltar ou ameaçar o circunspecto Praxedes.

Retribuiu ao sorriso e ao olhar amigo do pequeno com outro “oi”, seguido das perguntas (óbvias) se ele estava bem, como se chamava e o que fazia ali. O menino emendou que seu nome era Romeu, vivia no Paranoá com a família, mas vinha habitualmente com a mãe àquela área residencial. Enquanto ela passava roupas nas residências próximas, para um “extra” na renda familiar, ele procurava colaborar e “trabalhava” como vigia dos carros no estacionamento do centro comercial. Praxedes gostou do nome do moleque, xará de um antigo craque tricolor, e também simpatizou com sua maneira de falar, segura, suave e pronunciando bem as palavras. Tinha reticência à gente que falava embolado ou alto ou baixo demais, tornando irritante escutá-la. Romeu fugia a esse padrão, o que certamente facilitou a conversação.

Conversa vai, conversa vem, gostou de saber que o menino ajudava a família a aumentar seu pão de cada dia, mas não deixava, por isso, de ir à escola e de dedicar-se aos estudos. Do alto de sua autovalorizada experiência, Praxedes recomendou a Romeu jamais esmorecer em seu esforço de estudar, pois a educação constituía, no seu entender, o caminho mais seguro para o progresso e o prazer pessoais. Refletiu consigo mesmo que a vida por vezes aponta outros caminhos, como o puxa-saquismo e o favorecimento baseado em outros critérios que não o do mérito verdadeiro, o que já vira ocorrer no escritório em várias oportunidades, mas não lhe pareceu o caso de ensejar dúvidas no jovem e simpático companheiro de papo naquela manhã.

Romeu comentou que gostava de aritmética e que tirava boas notas quase sempre. Sua matéria favorita, todavia, era a geografia. Apreciava conhecer outras regiões brasileiras através dos livros escolares e dos ensinamentos de sua professora. Nascera no estado do Rio de Janeiro, em Arraial do Cabo, mas saíra de lá pequenino, quando o pai, pescador, teve a sorte de conseguir emprego em uma construtora e vir para Brasília, com a promessa de melhor remuneração (felizmente, cumprida). Desde então, Romeu praticamente só viajara a localidades próximas da capital federal. Sonhava, um dia, poder visitar lugares que, mais do que bonitos, lhe pareciam mágicos: a Bahia, o Ceará, o Pantanal e a Amazônia. Acrescentou que, além das praias, matas e montanhas, adorava passarinhos. Bastou dizer isso para aumentar a simpatia que despertara em Praxedes, quem se julgava entendido em aves e pássaros. A partir daí, foi um desfilar de conhecimentos, por um e outro, acerca de sabiás, bem-te-vis, canários da terra e quantos emplumados mais houvesse para lembrar.

O bom papo interrompeu-se quando a mulher de Praxedes apareceu, de volta das compras. O homem e o menino despediram-se como velhos amigos e a amizade proporcionou boa “gorjeta” a Romeu, com a recomendação de certos pães, deliciosos, disponíveis na padaria local.

Depois desse encontro, sucederam-se outros, inclusive oferecendo ocasião a Praxedes de contar que conhecia a linda cidade praiana onde nascera Romeu e prestar variadas informações que certamente atiçaram o desejo do menino de revê-la. O bate-papo tornou-se tão agradável que Praxedes se desapontava quando convencia a mulher a fazer suas compras naquele centro comercial e não encontrava seu interlocutor mirim. Devia então se resignar às antigas caminhadas solitárias, imerso em seus pensamentos, que passaram a revelar-se insuficientes para ocupar o tempo, como se neles faltasse o vigor infantil e a vivacidade de Romeu. Por sorte, as ausências do moleque eram raras. Na maior parte das vezes, ali estava o pequeno, firme e atento em sua missão de vigiar os automóveis, ao mesmo tempo em que conversava animadamente com seu visitante ocasional.

Circunspecto e reservado por natureza, Praxedes pôde, pelo menos nesse caso, experimentar a satisfação de sair do casulo cotidiano e conhecer um pequeno grande ser, entre tantos outros que seguramente existem à espera da descoberta humana.

In Ibitinema e Outras Histórias (2016), editora Lamparina Luminosa, S. Bernardo do Campo, SP