São-bentinhas

Todos os anos, Curitiba se afasta cerca de 10 centímetros de São Bento do Sul. Parece pouco, mas é por isso que uma viagem de ônibus entre as duas cidades, que no passado não levava nem duas horas, hoje leva no mínimo duas horas e meia. Daqui a alguns séculos, Curitiba estará mais ou menos onde hoje é São Paulo, e então o trajeto poderá ser feito de avião. Darei graças a Deus, porque não precisarei mais dos horríveis ônibus que fazem o trajeto até lá. E chegarei antes, o avião não vai parar em Agudos.

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“E você é parente dos Fendrich do Açougue?”. Tem um Açougue Fendrich em São Bento, açougue tradicional, de mais de 100 anos, e que por pouco não fechou as portas, dia desses, para consternação de toda a cidade. Sou parente, mas é coisa do avô do dono ser irmão do meu bisavô, por aí. O meu ramo é dos Fendrich sapateiros, que não existem mais. É só olhar para o que eu calço e ver: não existem mais.

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Existe em São Bento do Sul uma esquina que é só minha, minha e de uma menina que, há muito tempo, já não se lembra dela. Toda vez que atravesso aquele cruzamento, eu estendo o olhar e é como se pudesse ver, outra vez, aquela cena derradeira, pois também não houve outra depois dela. Estou certo de que, se é verdade que, ao fim da vida, vemos uma retrospectiva com nossos momentos mais marcantes, lá estará a cena daquela esquina em São Bento do Sul, eu e aquela menina loira, cada um virando para um lado, mas os olhos fixos um no outro, e assim ficando por cinco, dez, vinte segundos, minutos ou horas, tanto faz, porque foi ali que o tempo parou.

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De tanto estudar a história da cidade, já posso hoje passar por uma rua e dizer quem foi o cara que dá nome a ela, já posso passar por um prédio e dizer o que funcionava ali cem anos atrás. Mas geralmente eu não digo nada, que não quero bancar o chato.

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Desde que morreu o Pedro Pipoca, nada mais me espanta, tudo pode acontecer. Pedro Pipoca era um tipo popular que ajudava a tirar o lixo das ruas, sempre carregando um radinho de pilha. Já não há Pedro Pipoca nem radinho de pilha – ainda há lixo.

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Era uma quarta-feira de sol, ainda pela manhã, meu pai havia saído para o trabalho não fazia muito tempo. Ali eu resolvi que estava na hora. Minha mãe chamou a vizinha, mas a vizinha, sozinha, não podia fazer muita coisa. Eram tempos antigos, em que não havia telefone nas casas. A vizinha então caminhou, caminhou 300 metros até encontrar uma fábrica. Lá eles tinham telefone. E chamou meu pai, que o meu pai viesse o quanto antes. Ele veio, e tratou então de levar a mãe para o hospital. Mas ainda demorou um bom tempo. Só por volta do meio-dia, já sentindo o cheirinho bom do almoço, é o que cronista nasceu.

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Tinha Vinícius de Moraes os seus 17 anos ao ser trespassado por uma Lua Cheia. Nunca mais foi o mesmo, e ali nasceu o seu primeiro poema. Tenho cá, comigo, as minhas próprias noites e os meus próprios 17 anos. Eu abismava diante do céu cheio de estrelas e concluía que o espetáculo mais bonito seria mais bonito se fosse compartilhado. Mas estava sozinho e achei que não havia mal em escrever umas coisas tristes, como as que o velho Braga escrevia. E, naquela noite são-bentense, eu comecei a imitá-lo.

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Grande idade, os 17 anos. Comecei a escrever, a usar computador, a pesquisar o meu passado, a viver com os pais separados. Também foi ali, num dos meus rompantes, que decidi sair de São Bento.

Henrique Fendrich
Enviado por Henrique Fendrich em 05/11/2017
Reeditado em 05/11/2017
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