Assim ou ...nem tanto.116
Infância.
Entrava naquele mundo logo que subia para o suporte da bicicleta. Agarra-me às ancas fortes da moça e vivia, suavemente, as agruras da viagem. O esforço de quem pedalava, o rosto rubro, o sol, a subida íngreme e, depois, o deslizar sempre veloz da descida que se arrastava por alguns quilómetros em caminho que a chuva escavava. Ninguém à vista. A mata fechava-se de um e outro lado até ao largo fronteiro de uma casa simples, branca, sem água canalizada e sem luz. Recebiam-nos ordens gritadas, o ladrar de vários cães, o mugido longínquo das vacas no pasto. Três quartos, uma sala, uma cozinha, uma despensa e a varanda com postigo e oito degraus altos a separar-nos do pátio ladeado de arrecadações, uma adega, o muro sem portão e o estábulo que abrigava cinco ou seis vacas e um boi. Guardo os cheiros da palha com bosta, da cama das rezes mudada, do leite fervido, do suor de um Adriano que mungia e me levava às costas de regresso a casa. A fruta madura, as couves da sopa, o fumeiro. Meu tio avô a fumar tabaco de rolo num cachimbo que parecia tão velho como ele. O aroma do fumo, o cheiro forte da pasta residual na haste do cachimbo, o sabor acre e borbulhante das bebidas fermentadas a partir de sementes várias e milho, a comida frugal, o pão caseiro com manteiga pura, os flocos de aveia e leite, a chuva miúda, a terra a molhar-se aos poucos pela água colhida da nora, as novidades da horta, os silêncios, as vozes a acudir no parto da vaca. Tratavam-me com deferência. Escutavam-me. Achavam graça ao que dizia e eu inventava, inventava.