Surto Previsto
Nada marcou mais, aqueles agitados anos oitenta como o assassinato do doutor Vieira dentro do seu consultório. Abelardo era um jovem sonhador, ouvia a banda RPM e tentava deixar o cabelo feito o de Paulo Ricardo, o problema era sua calvície precoce que o deixava mais próximo de Kid Vinil. Sua paixão pela Zulma se arrastava desde o dia em que a vira nua na piscina do Sargento Pereira, com quinze anos e o homem perto dos cinquenta ela garantia suas roupas de grife e um dinheiro no bolso para ir ao cinema. Abelardo não conseguia tirar aqueles seios da cabeça, eram pequenos, mas empinados, só vira coisa parecida numa revista furtada do Tio. Lá embaixo eram pelos descoloridos contrastando com o ruivo da cabeleira dela estilo “Cindy Lauper”. Era amor à primeira vista, queria casar-se com ela, ver seu filho naquele colo arrancando leite daqueles lindos peitos. Mas descobriram o romance da ninfeta com o Militar (escândalo geral) a esposa que viajava a serviço de representação comercial jurara vingança, cortaria a garganta da garota em praça pública, Sila era o nome dela, Nordestina de voz forte e faca amolada, “a saída era a fuga da menina” comentavam na rua. O policial em sua manobra corporativa fora transferido para outra cidade. Abelardo queria ajudar, certa madrugada tremendo de frio batera a porta dos pais de Zulminha, oferecia guarida, sua vó morava em uma fazenda de pouco conhecimento e poucas estradas, era o Trem de Passageiros e mais cinco horas em uma pequena trilha a pé para chegar-se até a casa. Bem, “Quem não tem cão caça com gato” dissera o pai da garota sem alternativa. Seguiram viagem naquele mesmo instante, Abelardo sentado ao lado de Zulminha que não se cansava de reclamar, não era bicho para esconder em mato. Ele ia alheio aquelas falácia, pois relava os olhos com restrição sobre o volume dos seios dela os imaginando nus, se aproveitava e descia um pouco mais pousando a vista nas coxas roliças e as via com todos os outros elementos como viera ao mundo, ela falava verborragicamente, ele a mastigava com fome de predador. Naquelas idas seu membro enrijecia com as imagens do cérebro, o que fizera nascer um riso sarcástico nos lábios dela, ao perceber Abelardo corara-se rubramente pedindo licença para ir ao banheiro. Tímido ao extremo não voltara a ter coragem de olhar para ela ou ligar o visor mental durante parte da viagem. Na fazenda Zulma conhecera a família e notara que não era tão ruim quanto se projetava no seu mundo inquieto, além da casa dos avós dele havia um aglomerado de moradias em volta, a monocultura do algodão sustentava aquelas pessoas, havia inclusive uma venda que nas noites de sexta e sábado se transformava em danceteria. No final de duas semanas Zulma colecionava paqueras, na lista se contabilizava dois primos dele, um tio divorciado que se aproximava dos quarenta, dois motoristas que coletavam o algodão pesado, um vendedor de cervejas que passava mensalmente e por ultimo seu próprio avô, um velho sagaz que usava brilhantina nos cabelos e dente de ouro falsificado. Mais uma vez Abelardo fugia com a amada para evitar sua morte, desta vez pela avó que no auge dos setenta anos ainda caçava com a espingarda polveira, esta que carregara até a boca para “chumbar” a galinha safada, como dissera. Foram para outra cidade, lugar que ninguém os conhecia, lá moraram em um barraco pago pelo pai dela, que queria aquele traste cada vez mais longe deles, para isto propusera que Abelardo se casasse com ela, alegara que seria para evitar as falações das más línguas por morarem juntos sem o sim na Igreja. Mas a moça não aceitava a ideia, achava Abelardo sem atitudes, dizia sem figuras de linguagem, que o seu olhar era patético e seu andar era de Jabuti. Mesmo assim ele tinha esperanças, “uma hora ela muda de ideia” pensava e assistia Zulminha beijar os vizinhos, deitar-se com aqueles que lhe davam estímulos imediatos, o barraco era um mini prostibulo e ele uma espécie de serviçal apaixonado. Algum tempo depois surgiam boatos de que um dos seus amantes estava com AIDS, nos anos oitenta a doença aportava do exterior com uma série de simbologias, “Doenças dos Gays” “Mal do século” “Castigo de Deus contra a liberação sexual” entre outras coisas. À medida que os boatos aumentaram crescia o medo na moça, se olhava no espelho e psicologicamente estava definhada feito Cazuza cantando Ideologia. Pensava em Lauro Corona, Sandra Bréa e outros que não apareciam nas telas. Começara a ter febres e dores fortes de cabeça. A AIDS nos seus primeiros anos era temida feito a Lepra, para alguns o próprio ar que se respirava de um contaminado era suficiente para contraí-la. Indiretas foram chegando de vizinhos mais próximos “Abelardo, tem gente querendo que vocês se mudem para não crescer a doença entre nós!” outros eram mais diretos em seus bilhetes; “Se não mudarem daqui incendiaremos a casa com os dois dentro!” Zulminha via seus dias contados e a vida passar precocemente, não se casara, não tivera filhos, apesar de ter se deitado com uma centena de homens. Abelardo também tinha suas neuras, já não ficava tão próximo da amada, mas não queria deixá-la em seus momentos finais, “Amanhã vou fazer o exame, se não tiver contaminada me caso com você!” dissera a quase moribunda embrulhada em um cobertor ao meio-dia de verão. Fizera o exame, o resultado não vinha rápido, os dias se passaram com um zumbido interminável nos ouvidos, um peso de infinitas toneladas a empurrando solo adentro a incerteza era mortal, chegado o dia, o medico fazendo suspense quis saber de parceiros e de todo o ciclo promiscuo dela. Abelardo ouvia tudo pacificamente, não sabia que até o irmão dela já havia lhe comido, só ele não tivera o gosto, era humilhante saber daquilo, nomes conhecidos outros nem fazia ideia de quem poderiam ser, até o Padre tivera o seu esperma depositado ali naquela pequena puta, deixara a vida para proteger uma escória doente, abdicara de todos os planos por culpa de uma paixão platônica por um par de seios e uma ilha de pelos pintados. Crescia-lhe a fúria, queria que morresse aquela miserável, seus olhos tinham fogo e gritava o ódio que sentiam, ela se esmiuçava, como um plano de câmera em plongée. Sobre a mesa do médico havia um troféu a escultura era indefinida, parecia uma deusa, tinha asas e duas serpentes, estava sobre uma base de ferro, poderia ser notado pelo volume que fazia sobre grossos papéis. “Talvez eu também tenha contraído esta doença, por ter me sentado no mesmo vaso que ela, por ter comido o resto da sua comida e colocado à boca no mesmo copo para sentir seus lábios!” Pensava Abelardo apertando a base de ferro do troféu, seus ouvidos foram bloqueados por vozes histéricas gritando por seu nome, elas o chamavam de bobo, pediam vingança. O medico dizia com um sorriso que felizmente Zulma havia se livrado do vírus HIV, casos como o dela eram raríssimos, poucos em todo o mundo. Os ouvidos de Abelardo nada poderiam absorver daquilo no mundo real, apenas as vozes interiores gritando difamações sobre ele, Zulma feliz pulava de alegria, abraçava o medico, dentro de Abelardo nascia um novo amante para aquela puta insaciável, aquela que fizera rodízio em todas as camas, exceto na dele. O medico era o novo amante dela, por isso foi o primeiro a tomar aquela pancada no olho, o sangue espirrara no exame limpo de Zulma, em seguida outra pancada desta vez na fronte, cambaleando o medico esticara o braço em clemência, mas despencara sem vida. Zulma em choque tivera aquelas mãos trêmulas e untadas de sangue a pressionar seu pescoço, relutante chutara com a força que tinha nas coxas bem torneadas, mas o rancor selecionado dentro dele era como uma couraça de chumbo, nada poderia sentir. Ao revirar os olhos desfalecidos Zulminha fora solta feito boneco de pano e pisoteada no rosto até ser possível escutar os ruídos de ossos se quebrando.