UM  MICO  NA  INFÂNCIA
Da série:Memórias  de  minha  rua
(O Tanquinho do Bugay)


Luiz,meu primo em segundo grau,filho de Mozart (o meu primo mais velho,hoje com 84 anos) foi um dos maiores amigos que tive na infância.
Um assobio logo de manhã era o bastante para que ele surgisse à porta da cozinha em nossa casa,pronto para mais uma jornada.
Combinávamos em tudo e partíamos para as brincadeiras sómente depois de cumpridas as extensas listas de tarefas que nos eram atribuídas.
É claro que os cronogramas traçados por dona Hilda,minha mãe,vez e outra eram bruscamente alterados num pular de cêrcas,por força de nosso nosso vício:
[Aviões !]
Bastava um teco-teco sobrevoar baixo pelo trecho que saíamos em disparada com destino ao campo de pouso a fim de bisbilhotar a máquina.
Às sextas-feiras,batíamos o ponto lá pelas nove da manhã com a certeza da chegada do correio aéreo. A recompensa à tamanha fidelidade ficava por conta dos razantes e acenos do piloto antes de tomar o rumo da cidade de Guarapuava.
Aviões à parte, acredito que os banhos de riacho tenham sido o que de melhor marcou aquela época .
Reunia-se a piazada e as tardes rolavam soltas no potreiro de dona Júlia Bugay,nossa vizinha, por onde serpenteava pequeno córrego desembocando num local largo e não muito profundo à que denominávamos “O tanquinho do Bugay”.
Dona Júlia,polonesa da sêpa,em sua rigidez não admitia aquela farra em seu terreno.Travava-se,então,uma batalha que durou longo tempo.De um lado a intolerância da polonesa (com tôda razão) inconformada com a invasão,chingando aos berros com aquêle sotaque que suprime um "r" na  pronúncia:

_ "Bando de cachorada. Sai  daí ,vão pra escola cachorada"
De outro nós ,os “sem tanques”, conseguindo na persistência e no cansaço dobrar a valentia da proprietária.
Mozart era um sujeito durão.Conduzia Luizinho à rédeas curtas e coitado deste se saísse fora da linha.O pau comia,no melhor estilo “vara de marmelo”.
Assim,tomávamos muito cuidado com os horários para que Luizinho estivesse em casa antes que o pai retornasse do trabalho.
Maasss...nem tudo nesta vida é perfeito e... A carne é fraca.
Tarde ensolarada! O tanquinho do Bugai brilhando no campo verde.Pouca freqüência naquele dia.Sabotamos as tarefas que ainda estavam por fazer e tomamos o rumo do potreiro,até porque ninguém é de ferro.
A água estava uma delícia.Os gansos protestavam contra a nossa invasão nas águas que lhes pertenciam por direito.Dona Júlia,nos observando do fundo do quintal,resmungava alguns chingamentos incompreensíveis.
Luiz e eu,pelados no tanque.
Saltos,mergulhos,braçadas...E as horas passando,correndo,voando...
Mozart ,para nossa infelicidade,retornara naquele dia um pouco antes do horário costumeiro .
Dá pela falta de Luiz.
Atina pelo famigerado (pra êle) tanquinho.
Chega às escondidas e carrega nossas roupas.
Hora de parar a diversão,voltar pra casa.
Cadê as roupas???
Procura-se daqui,procura-se dali e...nada.
Luiz se desespera e chora escandalosamente.Pergunta-me com insistência:
-E agora?...E agora?... Buah...Buah...
Calmamente a porção índio que já naquela época me habitava, busca uma saída e de posse de galhos de vassoura ,improvisamos saiotes tipo tampões,dianteiros e traseiros,para encarar o pequeno trecho da rua do Fomento por onde inevitavelmente teríamos de cruzar.
[Dois cocares ,e algum estudioso certamente iria interessar-se em descobrir à que tribo pertencíamos]
Entramos na rua ainda ao som dos irritantes soluços de Luiz.Nossas casas não estavam muito distantes e tudo poderia ter saído perfeito,não fosse o encontro inesperado com um enterro subindo em direção ao cemitério.
E, para piorar as coisas: exatamente em frente à casa de dona Júlia. Aquela !
Totalmente sem graça,fomos cruzando meio de lado,e despertando a graça e o riso da pequena multidão que acompanhava o defunto.
Surge então,mais um  complicador:Uma taturana que viajava enrustida nas vassouras resolveu dar uma queimadela “nas partes” de Luiz
.Apavorado , sua reação foi descartar a incoveniente.Assim,as mãos que até então agiam como prendedores dos tampões verdes, os liberaram .
Êste, ardendo  e pelado,saiu em desabalada carreira rumo à sua casa.
Eu continuei ainda lentamente e a  tempo de ouvir as graçinhas cochichadas ,os risos frouxos além de vislumbrar o olhar vitorioso e sarcástico da polonesa assistindo de camarote na varanda de sua moradia.
No dia seguinte,Luiz e eu,nos encontramos novamente para fazer um balanço daquêle nosso mico de infância.
Todo lamentoso,o peladão,vez e outra baixava as calças para mostrar a queimadura da taturana e os dois vergões que Mozart provocara com sua maquiavélica vara de marmelo.
Êste episódio me veio à lembrança assim que deparei com o açude da foto,que lembra um pouco o “tanquinho do Bugay”.
Joel Gomes Teixeira

Texto  reeditado.
Preservados os comentários ao texto anterior:

16/11/2011 04:16 - Chico Chicão
Que delícia de lembranca.Você tinha o tanque e eu o *bicão* do riacho que descia do morro onde hoje está a Basílica de N.S.Aparecida.Certa feita,levei uma surra que me inchou um dedo pela farpa do bambu verde.Mas era gostoso!É...não sei porque a gente cresce.Escreva mais amigo.Mate as suas saudades e as nossas também.Obrigado.Fique na paz!


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08/07/2011 22:51 - Geraldo Rodrix
Lido, descíamos o ribeirão das almas na cheia escondidos de nossos pais flutuando em troncos de bananeiras ou gameleiras secas. como diria Ataulfo Alves...eu não sei porque a gente cresce se não sai da mente essas lembranças.Abraços.Rodrix


17/06/2011 19:26 - lilianreinhardt [não autenticado]
Poeta que coisa mais linda esse texto. Pureza, evocação de raízes, costumes, vivencias, um tempo resgatado que se eterniza, lindo demais, parabéns!


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16/06/2011 20:49 - Anita D Cambuim
Eita infância movimentada! Este Mozart melhor faria se gostasse de música e não berro de menino castigado. Abraço.


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16/06/2011 18:15 - DOCE VAL
Maravilhosa homenagem para seu amigo...Que bom ter um amigo e sentir todo este carinho por ele, e ser correspondido no mesmo grau...Beijos no coração, paz e luz sempre.


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16/06/2011 18:11 - YARA FRANÇA
QUE AVENTURA!!! É MUITO AZAR SER QUEIMADO POR UMA TATURANA. 'TADINHO DO MENINO!!!


16/06/2011 16:07 - Jane Lopes [não autenticado]
Ô Poeta, que maravilha ler-te. Memórias... ai de nós sem elas. Um afetuoso abraço pra ti.P.S. As fotos são belíssimas, parabéns.


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16/06/2011 00:17 - marina zamora
Uma delícia de história. Como viajar por um paraíso perdido. Muito bom mesmo. Abraços